Sábado, 25.
O homem sabendo quem eu sou, por simpatia
ou convicção, durante a conversa, disse-me que gostava de ler qualquer coisa
minha. Pensei enviá-lo à livraria do Simão, mas suspendi o pensamento,
perguntando-lhe o que lia nesta altura. Respondeu-me, folgado e seguro:
“Comprei o livro do Rui Unhas e estou a ler o José Rodrigues dos Santos.”
Respondi-lhe: “Está em boa companhia. É melhor não se meter comigo, não faço o
tipo de literatura que o senhor aprecia.” Diz-me o que lês dir-te-ei quem és.
- Ninguém pode imaginar a leveza que sinto desde que decidi tomar
distância relativamente ao romance. Estou tão calmo que pareço uma lesma (ainda
assim espero que culta...). Sinto-me outro, transportado às alturas de uma indulgência,
desamarrado do suplício que carreguei durante anos - pelo menos uns vinte -, de
trabalhos forçados da escrita que em mim é sempre obsessão transformada de
tempos a tempos em depressão. O peso aligeirado, permito-me consagrar mais
horas à leitura, aos labores do campo, do jardim, das pequenas coisas para que
nunca arranjo um minuto, pondo em primeiro a difícil tarefa de ter ideias todos
os dias. Felizmente que continuo a dormir bem e de um jacto. Mas agora, animal selvagem
à solta, durmo ainda melhor. Aos meus sonhos desaguam (como a noite passada) os
doces murmúrios sensuais, os amores perdidos, intactos contudo na loucura
atenuada pela gulodice da idade, que consente só o que quer e com quem quer, selecção
exímia que vai buscar ao decanto da memória tudo o que ela guardou desses
momentos sublimes quando o amor aconteceu no fio diáfano das horas nocturnas
plenas do mistério que nunca se revela para que a cerimónia sagrada do amor
possa irromper no corpo e nos sentidos e a felicidade da alma perpetue cada rosto,
cada corpo suspenso da força transcendente da juventude eterna.
- A peça de teatro escrita por Tennesse Williams Doce Pássaro da Juventude, encenada por Jorge Silva Melo, tem como
actriz principal a excelente Maria João Luís que contracena com o actor Rúben
Gomes que eu conhecia de uma telenovela e não me havia impressionado nada. No
caso, mesmo Maria Luís, não a senti à altura do papel, com momentos certos e
outros hesitantes. Ao contrário, para mim foi uma surpresa, Rúben Gomes que
começou frágil e depois se agigantou. Evidentemente a temática do autor
americano é complexa e no desarrumo dos sentimentos, é preciso estar atento aos
pormenores diabólicos que Tennesse desenvolve com maestria. O saldo final é
digno, embora eu tenha muitas reservas quanto aos cenários, ao grupo de actores
secundários e ao final com aquelas palavras vomitadas sem convicção por Rúben
Gomes, quanto a mim a mais e são uma espécie de oração moralizante
absolutamente desnecessária.
- O
Simão queria que eu comprasse um cartão que o teatro S. Luís disponibiliza aos
frequentadores assíduos. Embora a assinatura anual seja quase formal, não me
interessei sob o pretexto que raramente vou ao teatro por achar que os actores
são fracotes e, sobretudo, representam não as personagens criadas pelos escritores,
mas as suas próprias. Eu desloco-me apenas
para ver o trabalho de certos actores e actrizes, de resto meia dúzia só. A
maioria é de uma mediocridade convencida. Os encenadores são culpados porque
correm atrás da moda, dos físicos de trolha, tirados a papel químico, híbridos
e insuportavelmente gémeos. Quando o esqueleto começa a finar-se, o que resta
fina-se também ou arrasta-se pelas tábuas dos palcos como caracóis carcomidos
pela decadência. A turbamulta de artistas larocas, veio dos shows da
marrequinha, dos concursos caracoleta, da moda, das telenovelas e assim. Não
sabemos ou adivinhamos o que as pobres e pobres tiveram de fazer para ali
chegar; temos, contudo, a certeza que o que ali acontece às claras não possui
substrato formativo, intelectual e tarimba. São simplesmente uns cromos.