terça-feira, abril 21, 2015

Terça, 21.
A indignação e a revolta tomou a Europa humanista e civilizada. Sem grande convicção a corte de Bruxelas, cedeu a reunir esta semana para estudar medidas para fazer face ao crime e ao tráfico de seres humanos porque é disso que se trata. Não creio que dali venha algo de substancial, posto que não é de um momento para o outro que o egoísmo e a indiferença tomam o lugar da solidariedade e da responsabilidade. Entretanto, ao longo destes três anos, morreram no Mare Nostrum pelo menos 10 mil pessoas. O el dorado que é a Europa transformou-se na antecâmara da morte para uns e num lugar de errância para a maioria.

         - Terminado o trabalho que comecei antes do temporal com a roçadeira em torno da casa, fui distender-me no salão, pus no gira-disco o 33 rotações de George Harrison que tinha comprado em Londres quando saiu (All Things Must Pass) que não ouvia há muito tempo, enquanto lia cinquenta páginas de Mais la musique soudain s´est tue. Forma de falar. Em verdade, passado pouco tempo, atirei com o livro de Matzneff e transportei-me para Piccadilly Circus terminadas as aulas, o passeio pela luxuosa Oxford Street, onde mais adiante tomava o metro que me levava de volta a Kilburn onde vivia. Graças a George Harrison (interrompido)

         - A imagem que Gabriel Matzneff criou de si, leva-o a recusar ser operado à neoplasia da próstata. Patético. Dito isto, observo que toda a gente que eu conheço e teve problemas naquele órgão, foram pessoas que viveram intensamente a sua sexualidade. Eu sei que os médicos dizem não haver relação de causa efeito. Quand même.  

         - Nesta altura do ano, não apetece sair daqui para lado nenhum. Sob um céu azul claro, as flores que se multiplicam tomam a forma e a cor do Paraíso descrito na Bíblia. Acresce o perfume que as laranjeiras em flor espraiam, adejando o ar de uma infinita gama de odoríferas impressões sensuais que penetram em nós levantando o que a natureza exige esteja no pousio beatífico da idade... Quando ofereço o olhar à paisagem livre de erva daninha, sou imbuído da serenidade que o silencio afaga quando ao fim da tarde o sol declina e o firmamento estabelece a transição entre o dia e a noite, em comunhão com o cântico dos pássaros repenicado nos ramos das árvores, o todo comummente pacificado depois de um dia preenchido da eternidade que fica para confidenciar à noite os segredos que não conta ao dia.


         - É curioso. Agora que me sinto leve, despojado do romance, um ser ligeiro e descomprometido como um adolescente idiota, instalou-se um vazio difícil de suportar que parece jornadear por todo o lado, dentro e fora de mim. É verdade que olho com outros olhos o campo verdejante, é verdade que me compraz vê-lo com o olhar de quem o vê penetrando nele a sua infinita e insustentável leveza, mas há qualquer coisa, uma nostalgia, um arrepio de má-sorte, um pressentimento subtraído ao destino, que me faz recolher em murmurações e ficar por muito tempo ausente em galáxias perdidas no oceano inacessível dos presságios aziagos. Este hiato que a mim mesmo impus, de forma a reescrever a história que eu próprio inventei, feita de mim e de uma infinidade de fantasmas, está a ficar um longo espaço de nada que permite crescer nele tudo o que despejei em centenas de páginas ao longo destes dois anos e meio. O tempo é hoje uma chiclete, um ioiô nas mãos de uma criança, que dele não tem nenhuma noção, senão fazê-lo estender e encolher para seu divertimento. Se digo que me sinto livre, distanciado das personagens que foram a minha companhia durante tanto tempo, não falo verdade. Talvez queira convencer-me que me é fácil e cómodo afastar-me de seres singulares que comigo privaram, descobrindo-me no mais íntimo e complexo estádio do meu ser, com uma ponta de recatado convencimento que elas são uma coisa e eu outra, elas mentem e eu falo verdade, elas são a raiz da vida e eu as trevas da morte. Esse tempo romanesco, que hoje invoco em acenos descontraídos, não passa do meu mais caro refúgio, aquele que me eleva a alturas de mim, fazendo-me viajar por lugares inexistentes, pairar acima das criaturas mortais, elevado ao alto dos penhascos da criação, impossíveis de serem avistados daqui de baixo, deste lugar que me priva da luz daqueles que encheram páginas da vida que lhes coube viver, e eu quis contar como se por aqui tivessem passado sem se deterem, vozes ciciadas, amores despidos, encontros marcados pelo desespero que me tocou viver por elas, essas personagens verídicas, sobraçadas pelo cruzamento e convívio imaginários, feitos de carne e osso, presença e ausência, como se cada vida fosse um encantamento que não pode perecer com a morte...