segunda-feira, janeiro 11, 2021

Segunda, 11. 

Quando deixámos o Hospor, diz-me a Glória: “Agora venha jantar a nossa casa.” As poucas dores que persistiam, parece que foram engolidas pela gratidão e apoio do seu convite. A casa onde entrei amparado pelo marido, estava muito bem aquecida, um grande fogo ardia na lareira do vasto salão, em torno da qual confortáveis sofás de couro convidavam ao relaxe. Jantar simples, animado, convivial. De seguida, pelas nove e trinta, pedi para regressar a casa embora a Glória tivesse adiantado a hipótese de eu ficar lá a dormir. Agradeci, comovido. No dia seguinte, sábado, fui à farmácia aviar a receita médica (anti-inflamatório e um laxante muscular). Vinha a sair, quando ouço chamar por mim – era o Raul que estava ao volante do jipe. “Então já por aqui?” Digo-lhe que fui comprar os medicamentos e ele: “Então porque não comprou ontem, já poderia ter começado o tratamento.” Respondi que não queria incomodá-los mais. Comoveu-se ele e com os olhos chamejados de lágrimas: “A Glória vai levar-lhe uma sopa logo à tarde.” Disfarcei como pude a comoção, sensível como sou despedi-me atabalhoadamente.  As dores tinham voltado em força, o acordar fora dramático, a descida das escadas, degrau a degrau, as duas mãos agarradas ao corrimão que o saudoso Augusto desenhou. Depois do almoço, passei pelas brasas, deitado na chaise longue, diante da lareira que a Piedade acendeu. Por isso não dei pela vinda da Glória e quando mais tarde abri a porta da cozinha para acalmar os esfomeados Blacka e Botas, encontrei um saco contendo uma caixa com sopa, seis ovos das galinhas dos meus amigos, amigos e meia tarte de maçã. Moral da história: amparado por amigáveis seres que eu não suspeitava capazes de gestos tão generosos, espontâneos, vindos do coração que explode solidariedade, pus-me a pensar, a comparar outros acenos de companheiros de route, com anos de camaradagem e cheguei à conclusão que das poucas vezes que precisei deles, só me deram palavras hipócritas e nenhum conforto e só alguns tal como a Glória e o Raul, fizeram comigo o mesmo caminho de compaixão e carinho: Zitó e Couto, Tó e João, Alice, João F., Carlos, António e Idalina e ainda a Carmo Pólvora que me ofereceu guarida na sua casa da Lapa, esperando não me esquecer de nenhum desses ternos companheiros das horas inundadas de incerteza e sofrimento – ao todo, em toda a minha vida, duas vezes. 

         - Estas reflexões levam-me a outras quiçá mais lancinantes que se alargam por esse vale de lágrimas em que se transformou o SNS. Antes da vinda dos meus gratos amigos, estando desesperado, telefonei e mandei e-mail para o meu centro de saúde, para o daqui, para o hospital de Setúbal e ninguém, absolutamente ninguém, se dignou responder. Percebi que estava abandonado à minha sorte. No Hospor despendi uma boa soma, fui bem acolhido, as dores abrandaram e espero que o tratamento me cure. Mas pensei enquanto aguardava que o analgésico fizesse efeito, nos milhares e milhares de pobres que naquele momento estariam a sofre resignados, entregues à morte antecipada, depois de uma vida de trabalho, descontos e miséria. Eu tenho sido saudável até hoje, mas devido à escolha de vida que é a minha, encaro os acidentes de saúde com um nisto de susto e heroicidade, necessitando e apreciando todavia uma companhia mesmo quando tenho uma simples gripe. Talvez reminiscências infantis quando nada disso me carecia. Mas todos esses irmãos, a quem falta o mínimo de sobrevivência, meio século depois de Abril de 1974, com vários governos socialistas, laudas de verborreia em favor “dos mais desfavorecidos” e nada ou quase nada foi feito para que todos tivéssemos dignidade e apoio na velhice e na doença, dois pilares fundamentais da vida humana. Governa-se de improviso, de qualquer maneira, apenas apoiados na importância que cada um confere ao seu estatuto, políticos montados nos tronos que por unanimidade construíram, olhando os desgraçados dos seus concidadãos do alto dessa espécie de coroação que são os cargos públicos. Exibem-se provincianamente nos palcos dessa Europa corrupta, tratando da sua vidinha, arrebanhados numa redoma de privilégios – reformas vitalícias por meia dúzia de anos de trabalho, seguros de saúde, bons salários, etc.. Bendita pandemia que pôs a nu um país que os políticos – todos – nos andaram a enganar existir. 

         - Mas os momentos difíceis são igualmente para mim espaços de confronto com a realidade pessoal. Mal diminuída a dor, logo monto no entusiasmo que os momentos de sofrimento me causaram e exulto por os ter vencido, apaziguado numa espécie de santificação que se alarga não só ao corpo como à intimidade do meu viver. Instala-se a confiança, aquela sensação de felicidade que dá valor a cada pormenor, a cada raio de sol a espreitar pela janela, o olhar viaja sucessivamente pelos espaços familiares, o corpo, aligeirado da dor, reinstala-se no seu rumo quotidiano e tudo o que ficou para trás é recordação de proeza e combate. Mas passamos a dar mais valor aos amigos, os verdadeiros, olhamo-los agora do lado solidário que ilumina a nossa vida com o facho insuspeito que não estamos sós. Os telefonemas são constantes, muitos vêm com sinceras propostas, outros com desculpas como a do João Corregedor, que me disse: “Helder, pensei ir-te a ir buscar, mas a Marília fez um trombo numa perna e tivemos de a levar ao médico”. Azar o meu! Eu que não lhe havia pedido nada, como aconteceu há dois anos quando na Brasileira disse que, devido ao avião para Cracóvia descolar às cinco da madrugada, outro remédio não tinha que pernoitar em Lisboa, no B&B do Carlos Neto, por 50 euros. Logo o João: “Olha podias ficar em minha casa, mas o quarto está ocupado pelo meu filho retornado de Paris.” Contudo, o Carmo disse in petto: “Não vais nada pagar 50 euros, que disparate; ficas em minha casa com a vantagem de estares próximo do aeroporto e haver uma praça de táxis à porta.” Mais uma vez perdi o conforto do apartamento do meu ex-colega e deputado comunista. Pouca sorte a minha! Espero que não haja terceira vez, assim como assim, não tenho de observar o confronto com outra realidade. 

         - O frio continua, não só em Portugal como por outros países da Europa, nomeadamente, em Espanha com a capital bloqueada de neve com mais de um metro. Até no Alentejo nevou e aqui, todas as manhãs, o verde do chão foi substituído por uma camada espessa de gelo. A Annie dizia-me ontem que em Paris nunca tiveram um inverno tão ameno. Os defensores do planeta dirão que isto é devido aos exageros consumistas das multidões. 

         - Resta-nos o espectáculo insano do princípio de golpe de estado na América, com invasão do Pentágono incentivada por Donald Trump que não aceita a vitória de Biden. Parecia idêntico ao que se passou no PREC com as mesmas cenas na Assembleia da República. A imagem de uma democracia com mais de 2 mil anos comandada por um louco, antecipa o que pode acontecer no mundo onde alguns ditadores espreitam a oportunidade para se apresentarem como salvadores. Nunca vi nenhum género de esquerda penitenciar-se pela chegada destes anormais à cena política. Criticam-nos, mas se são aceites é porque ela, a esquerda, falhou redondamente e deixou campo aberto para que  os déspotas se instalem.