sábado, janeiro 02, 2021

Sábado, 2.

Praticamente, ontem, passei o dia diante da televisão. Depois do concerto de Viena, à tarde vi no ARTE outro com vários excertos de árias de compositores do séc. VIII e XIX transmitido da Veneza. Dos intérpretes destaco o tenor Xabier Anduaga, um nome a fixar. Espanhol de nascimento, 25 anos, rosto rústico, redondo, boca pequena, físico sólido, barba mal semeada, olhar profundo, e uma voz envolvente, poderosa nos cambiantes que nos hipnotiza. O teatro La Fenice, correspondendo aos tempos magros, estava vazio e talvez por isso a beleza dourada que o cobre tomasse contornos transbordantes de outrora, quando Verdi por ali andou e escreveu as suas memoráveis óperas. 

         - Eu, quando me sinto abandonado de mim próprio, quando a instabilidade me banha com trémulas fúrias interiores, quando me sinto desmotivado de quem sou, quando o vazio chega ao ponto de me transformar num alienado do desespero e da desorientação, é na leitura de Julien Green que me abrigo. Porque mesmo durante os anos desvairados que foram os seus, materializados em páginas e páginas ad nauseam, há sempre um fio condutor de equilíbrio que vem provavelmente da infância ou da presença e protecção de Deus, olhando descontente para a vida que o escritor levava depois de ter renunciado ao seminário onde este para entrar. A morte foi desde muito cedo uma obsessão que talvez traduzisse o risco da vida que a liberdade o levou a correr. Quando o filho de Thomas Mann, Klaus, o foi visitar, os dois homens falaram da morte, decerto porque ambos tinham a mesma vivência, o mesmo perigo. Assim, nessa tarde de 2 de Dezembro de 1932, escreveu Green: “Combien de gens sont vraiment dignes de la mort? Certaines catégories d´hommes devraient vivre éternellement, châtiment de leur petitesse. 

         - A casa guarda sucessivos sedimentos de frio. Durmo com o calorífero aceso, e aqui em baixo as lareiras em permanência a crepitar e mesmo assim, pela manhã, o desconforto penetra os ossos. Apesar do dia claro, cheio de sol, e do silêncio que a pandemia alargou, a vegetação continua húmida e a cara do inverno estampada no chão que a noite atapeta com espessa napa de gelo. Ao serão, em frente ao fogo, tudo se transforma. Hoje, sob grandes esforços, avancei umas quantas linhas no romance, é do esforço, por vezes, que chega a inspiração.