domingo, maio 10, 2020

Domingo, 10.
Virginia Woolf, abriu as portas ao reconhecimento da mulher como ser pensante, activo e equiparado ao homem, muito antes de Beauvoir ter escrito o Deuxième Sexe. Artista da introspecção humana, da busca incessante pela arte narrativa, a procura da forma, a insatisfação, o tormento do romance perfeito, da análise subtil, substrata, do empenho na vida como entrega à literatura - complemento ou seu único elemento. Trabalhou desalmadamente, desceu aos infernos da arte como quem redime o destino, mas a perseguição da estética, da ética, da liberdade, juntos no cromossoma singular de haver nascido para a inquietação, o desajuste, a maldição fizeram dela um ser inteiro. As suas personagens permanecem vivas nos dias da nossa contemporaneidade. Eternamente insatisfeita, procurando novas formas de escrever, pensar e olhar o mundo, Virginia Woolf marcou a sua geração, não só através do Bloomsbury que ajudou a construir com o marido, mas pela sua participação singular, livre e sensível. Quando fechei o Diário, interrompido abruptamente com o seu suicídio, tive a terrível sensação de ter sido invadido pelo vazio, uma pequena morte e fiquei travado a inspecionar o tempo que de súbito se mostrou tenebroso.



Monks House 

A casa de um escritor tem sempre algo especial - dizia Virginia Woolf, aqui o interior da sua.  

         - Mas os escritores da sua estripe muito trabalham! Dir-se-ia que nem vida existe para além das margens das páginas que obstinadamente enchem. Estou a lembrar-me de Vergilio Ferreira, Saul Bellow, George Sand, Julien Green, Frederico Lourenço, Paul Morand, Ernst Junger, Yourcenar  para não recuar aos clássicos gregos e latinos. É quase uma obsessão ou um “vício” como dizia o Simão quando em Roma acordava e me via sentado à mesa do quarto a escrever e do sono empapado, atirava: “Vai dormir, larga o vício...” Se as pessoas imaginassem quanto é difícil escrever, a solicitação psíquica que um livro, um artigo ou um simples apontamento exige do seu autor, a solidão que o esmaga e em simultâneo o atrai, olhariam para o escritor e, sobretudo, para os livros que ele edificou, com estima em alguém que vive acima da vida comum, numa espécie de mundo abstracto, onde cabe em bloco todos os seres humanos por ele amados.

         - Depois, não havendo carro, não havia dinheiro. Aprecei-me, portanto, a telefonar ao tractorista que não viesse conforme combinado porque não podia pagar-lhe o serviço. Então irei amanhã. É o mesmo, só segunda-feira. Pelas três da tarde, estando eu a entrar no reino beatífico do sono, ouço uma buzinadela ao portão. Era o Sr. Carlos. Então a chover, sem dinheiro para lhe dar, que vem cá fazer. Venho fazer o serviço e não precisa de me pagar. Você é uma pessoa especial, deixe lá ver se consigo abrir-lhe o carro. Pensei: lá vem o especial, o pobre tonto que se isolou aqui em oração, ou coisa parecida. Tem uma chave (qualquer coisa). O que é isso? Tem um arame? Está aí mesmo ao seu lado. Foi ao tractor e trouxe a ferramenta, retirou uma baguete de plástico da porta, fez um gancho na ponta do arame e em menos de um minuto a porta abria-se como por magia. Andou de seguida talvez 3 horas a gradar a quinta, ao fim das quais diz-me: agora vamos ver por que razão o automático do portão não funciona. Já não trabalha há quatro anos e todos os ditos técnicos que cá chegam querem 30 euros para dizer que não conhecem este modelo. Riu-se. Voltou à carga. Tem esta chave assim e assado? Não sei do que fala, não conheço nada disso. Olhava-me sorridente, como a murmurar: mas que espécie de gajo é este? Por fim disse: esqueça. Eu esqueci, mas ele não. Diz que vai cá voltar com os instrumentos necessários ao apuramento da avaria. O seguro queria que eu pagasse ao “técnico” 50 euros para me arrombar a viatura. Recusei.


         - Falei com a Maria José, Fortuna, Alzira, Robert me informa que afinal a diarreia da Annie ficou a dever-se a qualquer coisa que ela comeu. A mim não me admira. Ela come coisas fora de prazo e, pior ainda, quer que as comamos também. Eu fiscalizo a data dos produtos que vão para a mesa. O Robert, frequentemente, vai ao frigorífico e deita ao lixo quilos de coisas fora de prazo. É uma obsessão que lhe ficou da guerra. Por vezes, ao jantar, prefiro uma sopa a ter de engolir aqueles pré-cozinhados que ela adora porque não dão trabalho. Já não é a primeira vez que a nossa amiga vai para o hospital por intoxicação. Fez a semana passada 86 anos! E continua a tirânica socialista que eu sempre estimei.