Domingo,
10.
Virginia
Woolf, abriu as portas ao reconhecimento da mulher como ser pensante, activo e
equiparado ao homem, muito antes de Beauvoir ter escrito o Deuxième Sexe. Artista da introspecção humana, da busca incessante
pela arte narrativa, a procura da forma, a insatisfação, o tormento do romance
perfeito, da análise subtil, substrata, do empenho na vida como entrega à literatura
- complemento ou seu único elemento. Trabalhou desalmadamente, desceu aos
infernos da arte como quem redime o destino, mas a perseguição da estética, da
ética, da liberdade, juntos no cromossoma singular de haver nascido para a
inquietação, o desajuste, a maldição fizeram dela um ser inteiro. As suas
personagens permanecem vivas nos dias da nossa contemporaneidade. Eternamente
insatisfeita, procurando novas formas de escrever, pensar e olhar o mundo,
Virginia Woolf marcou a sua geração, não só através do Bloomsbury que ajudou a
construir com o marido, mas pela sua participação singular, livre e sensível. Quando
fechei o Diário, interrompido abruptamente com o seu suicídio, tive a terrível
sensação de ter sido invadido pelo vazio, uma pequena morte e fiquei travado a
inspecionar o tempo que de súbito se mostrou tenebroso.
Monks House |
A casa de um escritor tem sempre algo especial - dizia Virginia Woolf, aqui o interior da sua. |
- Mas os escritores da sua estripe
muito trabalham! Dir-se-ia que nem vida existe para além das margens das
páginas que obstinadamente enchem. Estou a lembrar-me de Vergilio Ferreira, Saul
Bellow, George Sand, Julien Green, Frederico Lourenço, Paul Morand, Ernst
Junger, Yourcenar para não recuar aos
clássicos gregos e latinos. É quase uma obsessão ou um “vício” como dizia o
Simão quando em Roma acordava e me via sentado à mesa do quarto a escrever e do
sono empapado, atirava: “Vai dormir, larga o vício...” Se as pessoas imaginassem quanto é difícil escrever, a solicitação psíquica que um livro, um artigo ou um
simples apontamento exige do seu autor, a solidão que o esmaga e em simultâneo
o atrai, olhariam para o escritor e, sobretudo, para os livros que ele edificou,
com estima em alguém que vive acima da vida comum, numa espécie de mundo
abstracto, onde cabe em bloco todos os seres humanos por ele amados.
- Depois, não havendo carro, não havia
dinheiro. Aprecei-me, portanto, a telefonar ao tractorista que não viesse
conforme combinado porque não podia pagar-lhe o serviço. Então irei amanhã. É o
mesmo, só segunda-feira. Pelas três da tarde, estando eu a entrar no reino
beatífico do sono, ouço uma buzinadela ao portão. Era o Sr. Carlos. Então a
chover, sem dinheiro para lhe dar, que vem cá fazer. Venho fazer o serviço e não
precisa de me pagar. Você é uma pessoa especial, deixe lá ver se consigo abrir-lhe
o carro. Pensei: lá vem o especial, o pobre tonto que se isolou aqui em oração,
ou coisa parecida. Tem uma chave (qualquer coisa). O que é isso? Tem um arame?
Está aí mesmo ao seu lado. Foi ao tractor e trouxe a ferramenta, retirou uma
baguete de plástico da porta, fez um gancho na ponta do arame e em menos de um
minuto a porta abria-se como por magia. Andou de seguida talvez 3 horas a gradar
a quinta, ao fim das quais diz-me: agora vamos ver por que razão o automático
do portão não funciona. Já não trabalha há quatro anos e todos os ditos
técnicos que cá chegam querem 30 euros para dizer que não conhecem este modelo.
Riu-se. Voltou à carga. Tem esta chave assim e assado? Não sei do que fala, não
conheço nada disso. Olhava-me sorridente, como a murmurar: mas que espécie de
gajo é este? Por fim disse: esqueça. Eu esqueci, mas ele não. Diz que vai cá
voltar com os instrumentos necessários ao apuramento da avaria. O seguro queria
que eu pagasse ao “técnico” 50 euros para me arrombar a viatura. Recusei.
- Falei com a Maria José, Fortuna,
Alzira, Robert me informa que afinal a diarreia da Annie ficou a dever-se a
qualquer coisa que ela comeu. A mim não me admira. Ela come coisas fora de
prazo e, pior ainda, quer que as comamos também. Eu fiscalizo a data dos
produtos que vão para a mesa. O Robert, frequentemente, vai ao frigorífico e
deita ao lixo quilos de coisas fora de prazo. É uma obsessão que lhe ficou da
guerra. Por vezes, ao jantar, prefiro uma sopa a ter de engolir aqueles
pré-cozinhados que ela adora porque não dão trabalho. Já não é a primeira vez
que a nossa amiga vai para o hospital por intoxicação. Fez a semana passada 86
anos! E continua a tirânica socialista que eu sempre estimei.