Quinta,
30.
Ontem
cheguei à piscina adiantado. Por isso, uma técnica que trabalhava com as
crianças de ambos os sexos, disse-me que teria de esperar até que a revoada de
estorninhos levantasse voo. Fiquei, portanto, ali sentado a observar aqueles
corpos juvenis, aquela actividade fastidiosa, aquele entusiasmo empolgante.
Pensei no que diria Green e, sobretudo, Gide (um mais pederasta, outro mais
pedófilo) ante aquele fulgor da natureza em gestação. E conclui que não se deve
tocar na infância ela é tão sagrada e pura como a essência de toda a vida.
- Ontem à noite, depois de tanto
matutar, sentei-me ao computador e escrevi o começo de O Matricida. Não foi preciso muito para acreditar que todo o
romance nasce de uma frase, num instante de inspiração ou lá o que se queira
chamar. Para mim foi necessário apenas isto: Naquela manhã o sol abriu um buraco por entre as nuvens espessas e
despejou um raio grandioso de luz sobre a Terra... Era o princípio que me faltava, chave que
abriria a caixa de Pandora; porque o fim há muito tenho-o desenhado dentro de
mim. Tem esperança, rapaz! A partir de agora vai em frente por muito esforço,
abnegação e solidão que a tarefa te incite. Um romance é uma forma de escravidão
que toma conta do romancista todos os minutos do seu dia. Mas tu sabes disso,
não sabes?
- A assustadora expansão do coronavírus
leva a grandes medidas de defesa: 60 milhões de chineses retidos em casa,
cidades desertas, actividade humana reduzida ao mínimo, companhias aéreas a
suspenderem viagens para a China, repatriamento dos nacionais para os
diferentes países da Europa, a contaminação a chegar cada vez a mais países,
cento e tal mortes, milhares contaminados. Portugal, por enquanto, tem
escapado.
- Dia sem uma réstia de sol. Não faz
frio, antes fizesse. Horas estafantes de um dado para o outro com o técnico ao
portão a tentar pôr em marcha o sistema automático. Ligeira tristeza engastada numa
alegria ténue que sustém estranhamente a tristura. A Piedade está com gripe e
por isso proibi-a de vir.