sexta-feira, dezembro 25, 2020

Sexta, 25.

Ia-me passando. Outro dia a entrevista da RTP1 a Ana  Gomes foi um “serviço público” (como eles gostam de chamar), deplorável. O dito jornalista era um espectáculo, cópia do menino Miguel, fazia a pergunta e dava a resposta pela entrevistada, cortava-lhe com frequência o raciocínio, impunha-se, e no final nada ficámos a conhecer do programa da candidata a Belém. Eu nunca me sujeitaria a um suplício daqueles. O jornalismo, hoje, é um punhado de pedras atiradas a quem aceita ir às televisões. A ele, jornalista, só lhe interessa o escândalo, o fait divers, o drama com lágrimas copiosas, a exposição dos seres humanos à humilhação pública. O poder deve ter muito de narcisista e masoquista para que pessoas com dois dedos de testa, se sujeitem a ser enxovalhadas por um Zé ninguém às ordens de um qualquer fantasma que lhe bichana ao auricular instruções.  

         - A Missa do Galo vaticana em tempo de pandemia: 




         - Perde-se o dia em favor da noite. O braseiro suave que por aqui pairou, esconde-se agora na curva do horizonte, levantando do chão um frio frisante que aumentará pela noitada fora. Fico-me a olhar o clarão alaranjado ao fundo da quinta, do lado de lá, onde o céu confina o espaço. Os tons são muitos e variados e jogam às escondidas com as árvores que se interpõem no caminho da visão. Escrevo estas linhas diante da janela baixa, com o calorífero aceso, e sem a luz do candeeiro que tenho sobre a mesa. Quero-me aglutinar nesta atmosfera irreal, fundir-me nela, fazer entrar o lusco-fusco no salão e o exterior e interior ser apenas um, ovalado num todo. A sensação que experimento, é que céu e terra são uma e a mesma unidade, o silêncio sela a harmonia do conjunto, com um insinuante murmúrio a brotar do chão as vozes que por aqui passaram e aqui voltam para refrescar a memória e humanizar o espaço. Pelas frestas das janelas, entra desabrido o aroma de muitas chaminés aquecendo as vivendas que começam no Penedo da Saudade e terminam em Tovim. Eu acabo de entrar no eléctrico que me deixará no Colégio Luís de Camões e não caibo em mim de esperanças, de futuros rasgados na minha cabeça doida que não pára um instante de inventar cenários que decerto nunca se realizarão. Vou ao lado de Miguel Torga, que traz sempre que o vejo uma gabardine usada, e como eu leva mundos dentro da cabeça que precisam de cirandar para que a mesma não estoire. Ele sai em primeiro - sou eu que lhe dou passagem -, ambos seguimos pela rua com o mesmo nome do colégio; depois ele passa para o outro lado do passeio e entra na vivenda onde mora, eu sigo em frente para franquear o portão ao fundo do lado direito. A Cumeada tem um perfume quando o crepúsculo se instala que nunca deixou o meu olfato. Tenho a lareira acesa e talvez o fumo da chaminé seja o condutor da memória, porque sem ela morremos, perdemo-nos de nós, afundamo-nos num mundo de sombras vadias que nos perseguem como pesadelos. A noite desceu, enfim. Ainda não fechei as portadas, acendi as luzes, ou voltei costas ao dia que desfalece na mancha de sangue que persiste estática na minha frente. A abóbada celeste é quase um oceano zimbrado, com leves manchas esbranquiçadas, por onde o escuro da noite força a entrada. De repente, há como que um pavor a sair do firmamento, onde só as árvores se desenham no palato do céu. Quem olhar para a casa do caminho, verá um candeeiro aceso num canto e alguém sentado a uma mesa a realizar a magia que a noite amanhã segredará ao dia, quando este empurrar a escuridão, e a vida voltar renovada nos braços radiosos de outro tempo - este que por estas linhas passou e o outro que a recordação alimentou.