quarta-feira, dezembro 16, 2020

Quarta, 16.

O Colégio Eleitoral americano deu por terminado o calvário de Biden atribuindo-lhe a vitória calando assim a maluquice de Trump. O que se segue, ninguém poderá prever. Contra os vaticínios de muitos e de mim próprio, uma guerra civil não estará à altura de um especulador imobiliário. Mas estou de acordo com Pacheco Pereira quando afirma: “O que há de significativo nessa votação é que os 74 milhões eram só para Trump e os 81 milhões eram contra Trump e não por Joe Biden.” Uma nação que vive em democracia há mais de um século, é suficientemente sólida para afastar um tal desastre. 

         - O folhetim Eduardo Cabrita está com mais uns quantos episódios. Começo a ter compaixão pelo homem que, tendo muitas culpas no cartório, não poderá ter todas. Porque quando há funcionários que mentem para encobrir os assassinos, quando toda uma equipa – enfermeiros, médicos, assistentes, guardas – colaboraram na morte do infeliz ucraniano, quando a directora do serviço, uma tal Gatões (cruzes!) tentou disfarçar o crime, quando quase todo o SEF parece uma organização de malfeitores, a responsabilidade não pode recair inteira sobre o ministro - para mim isso é evidente. 

         - Eu, como os leitores sabem, desde a entrada do Chega no Parlamento, nunca o considerei ao ponto de nada saber dele e só recentemente me ocupar de o observar. Isto porque a esquerda lhe deu tanta importância que comecei a deitar o olho à personagem e ao que da sua cara barbuda brotava. Vi, pela primeira vez, o frente a frente com o Miguelinho e achei que André Ventura estava melhor preparado que o infausto perguntador, do alto da sua importância nem deixava falar o convidado. E assisti, ontem, à entrevista que o candidato a Chefe de Estado deu à RTP1. E francamente, movido do que hoje sei do homem e do seu partido - mais dele que da organização decerto de amantes de futebol que o pôs na Assembleia -, não merece a publicidade que a esquerda lhe tem feito à borla. O sujeito é nulo de ideias, malbaratado de argumentação, escrevendo uma coisa para logo se contradizer e ter precisão de esclarecer o que tinha mal alinhavado, construindo o discurso numa folha de lugares-comuns, de populismo fácil, protege-se com a argumentação popular descontente com o caminho que o país tomou por incompetência e prepotência da esquerda, sem que ele tenha propostas claras para a substituir. O Chega, apesar do medo da esquerda, que o teme porque o seu trabalho tem sido desastroso e fechada em propaganda que não confere com a realidade, apesar de tanto rumor, o Chega vai implodir não tarda. Já agora esta minudência: o Chega e o PCP são os únicos a querer manter Eduardo Cabrita. Embora por razões diferentes, o Chega porque ambiciona ter a Polícia do seu lado; o PCP porque a parceria com António Costa é para manter. 

         - Falemos de coisas mais importantes e sérias. Estou curvado de reconhecimento a um jogador de futebol (não, não é esse, esse é analfabeto, egocêntrico, ganancioso incapaz do gesto que vou narrar, como de igual modo qualquer outro jogador ou treinador nacional). Falo de Mesut Ozil, jogador do Arsenal que, através das redes sociais, denunciou o campo de concentração chinês dos uigures, uma minoria muçulmana que fala o truco, perseguida e privada dos direitos humanos, no noroeste da China, na província de Xianjiang.  Os chineses de Xi Xinping ping ping dizem ter mais de um milhão de adolescentes em campos de “reeducação”, talvez idêntico ao dos nazis, de forma a fazê-los esquecer a sua religião e prepará-los para os integrar na sociedade chinesa. Em consequência, num mundo de idiotas, onde o dinheiro é o deus venerado, o jogador foi posto de lado embora lhe paguem milhões, e perdeu mais uns quantos milhões de publicidade, mas não renuncia aos seus valores humanos e éticos e não dá ouvidos aos dirigentes do Arsenal que dizem ser “independentes da política”. 

Mesut Ozil popular jogador de futebol e das causas humanitárias. 

          - Ontem almocei com o João Corregedor. Uma pipa de assuntos foram despejados no decorrer do repasto cordial e extremamente simpático. Como ando a trocar o lençol de baixo para não dar muito trabalho à Piedade quando muda as camas, ele acompanhou-me à retrosaria antiga perto da pequena livraria do Simão. Uma das poucas lojas que heroicamente resiste à terrível razia que se instalou com a Covid. Mais de metade de toda a Baixa, fechou de vez. Antes tínhamos estado na Brasileira, na esplanada, num dia claro sem frio nem chuva – um dia de graça depois de duas semanas de chuva, vento, trovões, inundações e dias de uma tristeza sem fim.   

         - Levantei-me ainda ensonado para estar às oito da manhã no Auchan, em Setúbal. Quis evitar as enchentes que “achatam a curva” e em boa hora porque no super andava eu e uma dúzia de velhotes. A seguir ao almoço, passei levemente pelo sono e sentei-me ao computador, voltado para o campo onde a chuva caía num choro sentido, e ataquei o romance. A propósito, tenho a sensação que o facto de não ter ninguém que o publique, a este e a outros já escritos, dá-me uma extraordinária liberdade, uma comoção de escrever para quem vem depois de mim, íntegro e inteiro, indiferente a tudo, refugiado na urgência do artista solitário que reconstrói o mundo que o marcou e deixou o registo imperecível da voz do tempo que todas as manhãs se imobiliza em palavras e sentimentos e imprime nas páginas o gesto largo da liberdade e da independência – singulares e sagradas razões da arte.