quinta-feira, dezembro 17, 2020

Quinta, 17.

Fui ao barbeiro. Estas instituições ainda são o que sempre foram: lugares do diz-que-diz-que, espaços onde se deixa à mercê do lugar as mais insuspeitas e terríveis aprendizagens, boataria e verdades bichanadas. Vai lá o rufia como o professor de medicina, o taralhouco e o artista de flor na lapela e até o político trasvestido de importância.  O homem que me corta o cabelo há uma data de anos, contou-me que um cliente lhe contou que um oftalmologista com letreiro na porta de entrada e folha de bons serviços exposta na internet, depois de observar o paciente, disse: “O meu amigo tem uma catarata em cada olho.” Refeito do susto, o homem pergunta-lhe o que devia fazer. “Isto só operado. E quanto custa a operação? Mil e quinhentos euros cada olho.” O doente ia cegando de vez. “Homem não se assuste! Fazemos assim: eu opero-o a uma vista por mil e quintos euros e o senhor vai ao público operar-se à outra que é grátis.”  Ainda esta. Perguntei ao meu escanhoador se conhecia uma pedicura. Ante a afirmativa logo veio: “Cuidado com isso! Eu tenho um cliente que tiveram de lhe cortar o pé por causa de um calo mal tratado.” Só mais esta. O director de um hospital, homem de grande sabedoria, é constantemente solicitado pelas televisões para falar sobre a Covid-19. Nunca aceitou conversa com essa gente, mas com ele, seu barbeiro estimado, tece longas conversas assentes no princípio que os seus colegas palradores nada sabem sobre o vírus. “Sabemos muito pouco sobre esta pandemia, e quanto às vacinas ainda menos.” Rectifico: barbearia é escola de conhecimento científico e humano. 

 

         - Nuno Pacheco é um jornalista do Público que eu aprecio imenso e leio com agrado. Normalmente ocupa-se da Língua Portuguesa, falada e escrita, com maestria. Hoje, aborda a invenção de certas palavras por poetas e romancistas, palavras essas que os guardadores da língua nos dicionários nem sempre acolhem. Depois saiu-se com esta que é de uma beleza, digo até criatividade: “É bom lembrar que, antes deles (os ficcionistas), muito antes deles, são sobretudo as crianças que mais palavras inventam sem as registarem, pelo simples gozo da descoberta, trocando-lhes letras e sentidos, virando palavras do avesso como quem revira brinquedos.” Agora que narro o que acabei de fazer, veio-me à memória a discussão que eu tive com o revisor do meu ensaio Fragmentos do Silêncio. O pobre homem discutia comigo a propósito de duas ou três palavras que apareciam no texto, que ele dizia não existirem nos dois ou três dicionários com que trabalhava. E insistia: “Eu percebo o que quer dizer, mas as palavras não existem.” Eu tentava fazer valer os meus argumentos, e, por fim, saí-me com esta: “Olhe se não existem passam a existir porque eu não as dispenso.” 

 

         - A Piedade andou aí e deixou tudo num brinco. Quando saí do barbeiro, dei um passeio na Luísa Todi sob céu limpo, lacrimando fios de calor sobre a terra. De retorno a casa, abri as janelas de cima e de baixo que assim ficaram até agora (16,36) de modo a enxotar o coronavírus. Mas claro entrou o frio do entardecer, pelo que acendi a lareira do salão. Não trabalhei no romance e talvez também não lograsse fazê-lo, porque tudo aqui dentro ferve de ansiedade e a cabeça anda numa insurreição. Leituras só o Público e o Diário de Green (pág. 440).