sexta-feira, dezembro 04, 2020

 Sexta, 4.

Quis espreitar outros mais, não só por curiosidade como por dever de ofício. E assim entrei no vídeo de Valter Hugo Mãe. A figura não sei porquê não me era simpática, nunca li nenhum dos seus livros, não conheço nenhuma referência sobre o autor e o seu trabalho. Mas vou informar-me, porque o que vi e ouvi, acercou-me de um escritor na verdadeira essência do termo. Os excertos dos seus livros que a voz em off nos dá, a escolha do próprio de viva voz, traduzem alguém que pensa e ao pensar dá-se inteiro à revelação mais imediata como ao murmúrio que lêveda os sentimentos e os transforma na matéria fluída da criação. Dos três vídeos da autoria de Carlos Vaz Marques que vi, este é talvez o melhor conseguido. Ainda por cima, tudo na personagem tem um ar civilizado, simpático, abordável pelo lado humano que sem ele nenhum escritor pode pretender ser o artista que os nossos antepassados, homens da cultura e do espírito, nos legaram. Até o ambiente em que vive e trabalha me agradou; sem aquela base que subentende o que a aparência esconde. Conclusão: Helder, nunca dês demasiada importância à aparência; muitas vezes ela é o invólucro que cobre o que a fachada não conta à retaguarda.  

         - A desorganização mental provocada pela pandemia, está a arrastar-nos para um pântano psicológico medonho. Envelhecemos dez anos num ano. Embora as esperanças dos governantes sejam no sentido que tudo voltará ao que era, tal não se me afigura credível. Há esse desejo não só dos políticos, mas principalmente da economia. Todavia, qualquer coisa mudou, tocou-se o fundo nos relacionamentos, descobriram-se as misérias e os podres de países e pessoas, percebeu-se que a vida moderna não se plasma nas palavras daqueles que falam a toda a hora, noite e dia, vomitando loas que não encontram no enquadramento actual e no que vai suceder-lhe correspondência. A vida parou, estagnou, está reduzida ao que resta das economias daqueles que as têm e a faz estrebuchar ainda até ao derradeiro suspiro. A partir daqui, qualquer cidadão atento, inteligente, interveniente, percebe que o antes da Covid-19 não se projecta para depois dela. São dois mundos que não se cruzam, para o bem e para o mal. Decerto mesmo ao nível da ciência; as futuras vacinas empreenderão outro caminho, os povos ficarão mais expostos à pressa e ao lucro, o ser humano culmina num qualquer objecto que gasto pelo uso, é deitado ao caixote do lixo. Talvez até não acha mais anciãos, ficaremos na terra enquanto formos úteis e não dermos trabalho e despesa. Os próprios regimes democráticos talvez não desaparecerão, mas confinam-se a novos valores universais onde o homem é qualquer coisa e não o centro da civilização e do humanismo. Deus será de novo cruxificado, e sobre a terra não haverá mais lugar à parusia de Jesus. Ficamos sob o ceptro de tiranos, de grandes máquinas de propaganda que intoxicarão a humanidade debaixo de um mesmo princípio ideológico, com variantes criadas pelo senhor poderoso que produz a seu bel prazer as regras e o sentido da nossa existência. Muito disto vê-se a céu descarnado no quotidiano corona; multidões ignorantes, temerosas, sem motivação para viver, arrastam-se aos trambolhões impondo a brutalidade da falta de cultura, da pobreza de espírito, da pobreza tout court; enquanto os políticos ensaiam uma sociedade à mercê de imputos diários, de ordens carregadas de poder e arrogância, que denotam antes demais as suas fragilidades, a desigualdade de comportamentos e orientações gerais. A Covid-19 denunciou o seu lado errado de governar, a sua falsa ideologia, o devorador e obsessivo proveito do poder. 

         - Tédio absoluto. Marasmo. Frio e chuva a prender-nos às proibições de toda a ordem. Para onde se ausentou a vida? Eu gosto da solidão, mas não desta que me é imposta.