quinta-feira, dezembro 24, 2020

Quinta, 24.

Ontem fui ao estomatologista e só não desmeei com o orçamento porque devo ter um coração sólido. Agora a moda por todo o lado não é conservar o que se tem, é acertar o passo com o deita fora e compra novo. Assim é com a dentuça. Não vale a pena manter os nossos dentinhos porque o médico tem urgência em enriquecer e de todo o modo o que ele nos propõe é duas filas de ouro como se pertencêssemos a um bando de salteadores daqueles que na América fizeram fortuna. Posto isto, arranquei a segurar os queixais não fossem eles ir parar à conta bancária do ilustre clínico de sorriso matreiro e olho certeiro, ao encontro do João que fazia as encomendas para a Ceia de Natal no Vitta Roma. Por lá me mantive umas duas horas à cavaqueira. De tudo o que falámos, o que mais me comoveu foi a sua intimíssima preocupação com a filha “que esteve por um fio”. João não derrama a dor, esta fica suspensa numa espécie de nuvem a que não deixa ninguém acessar, mas passa para nós como um drama de que é difícil falar. Por isso, a política se interpõe, não para ser tema de conversa, mas para correr o pano escuro entre ele e o seu interlocutor. A política não se sobrepõe à dor, esta é que sendo forte convoca-a para atenuar o sofrimento. 

         - A notícia do dia é o abate numa propriedade da Azambuja de 540 animais entre veados e javalis. A origem era a montagem de uma central fotovoltaica que para tanto não podia avançar com os pobres animais continuando a viver ali em liberdade. Vai daí, convoca-se um punhado de ricos caçadores espanhóis que se encarregarão rápido e barato de limpar o terreno. A batida começou cedo e prosseguiu até à meia tarde e do dia ficam as fotografias dos assassinos exibindo como troféu as centenas de bichos no Facebook. A carne foi despachada para o país vizinho onde será vendida a retalho em camiões frigoríficos. Os donos da propriedade, três dias depois da indignação geral, através de uma agência de comunicação, vieram dizer que não estavam a par do ocorrido; o Governo, como é apanágio em Portugal, para além de desconhecer a montaria organizada na quinta, diz que vai revogar a licença de caça da herdade e apresentar queixa ao Ministério Público. Pergunta-se para quê? 

         - De súbito o frio. O sol não chega a ter calor que se sobreponha à ventania desagradável que traz o desconforto. Incerteza, vazio, horas em branco. Nem os inúmeros telefonemas dos amigos de cá e de fora, bastam para reconduzir os dias ao equilíbrio e à paz que ameniza a solidão destes dias tenebrosos. Não penso no Natal, mas na vida tal qual ela se nos apresenta, prisioneira deste vendaval de tristezas que nos afirmam terminar com uma simples e miraculosa vacina. Quero sair, mas tenho de ficar. São 16 horas e 7 minutos. Que merdelhice de vida! Vou acender as lareiras do salão e da cozinha.