quarta-feira, dezembro 02, 2020

Quarta, 2.

Macron, honra lhe seja feita, ordenou que a vacinação contra o corona, começasse pelos idosos. Entre nós os velhos que ocupam as câmaras mortuárias chamadas lar, esperam deitados pela morte – assim se vê duas filosofias bem diferentes, só que uma diz-se socialista. 

         - Os infectados com coronavírus estão a reduzir desde que sólidas medidas foram tomadas. Triste é que, entretanto, tantos tivessem morrido, milhares tivessem ou estão doentes, porque António Costa demorou, voluptuoso com a economia, a tomar as decisões que se impunham. Que os anciãos se lembrem disso quando chegarem à mesa de voto.  

         - O que irá acontecer aos chefes de cozinha e donos dos restaurantes que continuam em greve da fome, à espera que o Mágico saque da cartola a macumba que os leve de retorno aos seus lugares de trabalho? O líder por eles escolhido, um tal  Ljubomir Stanisic, básico e grosseiro, não abona nada em favor deles. Aconselhava-me um conhecido esta manhã na esplanada da Brasileira a não ter pena deles, porque todos fugiram anos a fio ao fisco. Talvez tenha razão. Mas olha se eles não o tivessem feito, o que seria das suas vidas nesta altura! Num país onde meio mundo se esconde do fisco, remeter para eles o ónus do crime, é uma injustiça.  

         - Marcelo falou, por uma vez, claro. Disse que a UE não faz mais que justiça ao ajudar Portugal nesta altura, atendendo ao seu contributo anual para os cofres de Bruxelas. Nunca tinha ouvido nenhum governante falar no assunto. Sempre acusam Portugal de gastar, mas nunca dizem que também damos e forte para o bolo económico-financeiro da União Europeia. 

         - Morreu aos 97 anos Eduardo Lourenço. Ainda há pouco tempo nos cumprimentámos na livraria do Corte Inglês. Parecia estar bem, embora muito cansado. Conheci-o em Paris quando das comemorações dos 50 anos de vida literária de Virgílio Ferreira. Foi este que nos apresentou a mim e à Annie que levei comigo à Embaixada de Portugal. Eduardo Lourenço não conhecia nenhum dos meus livros e foi Virgílio Ferreira que lhe citou dois títulos - o que nos surpreendeu à Annie e a mim. Gostava muito de ambos e, cada um com a sua paixão e cultura, ajudaram-me a ser quem sou. O autor de O Labirinto da Saudade era um homem religioso, numa abrangência que não dispensava a fórmula concepcional de princípio divino. Como Sophia. 

         - Na RPT1 tem passado uma série que os seus autores chamam Herdeiros de Saramago. Quem me alertou para isso, foi o João Corregedor. Eu vejo o mínimo das estações nacionais e quando observo é acidentalmente. Depois chegaram-me impressões e pareceres de vários outros amigos a quem fui perguntando o que acharam. Grosso modo, todos me disseram que não tinha interesse e o João foi ao ponto de tecer um péssimo parecer sobre a qualidade do som e imagem. Assim fiquei. Ontem, ao serão, não estando com disposição para ler, espreitei no computador a série. À parte Tordo e M. Tavares, nunca ouvira falar dos outros novos escritores e só as obras de ambos havia lido. Portanto, espreitei os dois que me interessavam, ignorando se os outros tinham interesse e qualidade que me atraísse. Falando verdade como é meu apanágio e tendo jurado a mim mesmo nunca mais bajular ninguém, ainda que em vivo e talvez morto nada do que escrevi ou publiquei venha a ser editado, a verdade é que compreendi que cada um dos escolhidos corresponde integral e verdadeiramente ao seu trabalho, os seus livros são aquilo que eles deixaram transparecer na emissão. Assim, uma boa parte do programa com Gonçalo M. Tavares aligeirei correndo o cursor de forma a livrar-me daquela cabeça formada de pedacinhos de calhaus de ouro e marfim de um valor incalculável; Já o filme sobre João Tordo, sendo todo ele passado a papel químico da sua natureza romanesca, achei-o interessante, frágil até, mas profundo no desajuste entre a realidade e a ficção, tomando por base um universo onde navega algo que eu identifico, mas não me cabe a mim revelar – e é nisso que reside o mistério de João Tordo...