sábado, novembro 14, 2020

Sábado, 14.

Ontem cheguei propositadamente cedo à Brasileira. Na véspera tinha-me telefonado a Carmo Pólvora a desafiar-me para um almoço. Sentei-me no interior do café, porque na esplanada fazia frio e a chuva caiu a dada altura. O objectivo de ter madrugado, foi fechar-me no romance e também evitar grandes enchentes no comboio. Em boa hora, Santo Deus! Das nove ao meio-dia, escrevi três páginas, três!, tendo chegado às 30 de um trabalho muito difícil. Fomos depois os dois ao encontro do João Corregedor que não anda a passar bem para o restaurante da Av. Roma onde eu agora abanco com frequência. Trata-se de um pequeno e modesto restaurante, com preços acessíveis, cozinha caseira e fica junto à estação de comboios de onde chega e parte o Fertagus. Acontece que a pintora e o nosso ex-deputado, são dois conversadores implacáveis e, por isso, a mim apenas me incumbia de atiçar a chama para que o fogo progredisse e eu pudesse descansar a língua e os miolos. Estivemos a discutir política até às quatro e meia da tarde. Frisson não podia faltar entre mim e o João, nesse campo de ninguém que separa a China e a Rússia do Ocidente e Estado Unidos democráticos. Para o João a democracia exerce-se hoje na China, Rússia, Coreia do Norte, o resto “temos de discutir o que é para ti democracia”. É sempre esta a parábola. Felizmente nutrimos estima um pelo o outro e esse facto é infinitamente mais importante que todas as catástrofes, idealizadas ou reais, que assolam a política mundial. 

          - Começaram os primeiros grandes motins atribuídos à Covid-19 e contra o “achatar da curva”. Foi no Porto (e também em Lisboa) com os patrões dos restaurantes revoltados por terem de fechar aos sábados e domingos dias de maior ganhos. Não vão passar muitos dias para Costa voltar a trás na interdição. Um desses chefes cozinheiros, aventou outra solução que me parece mais cordata e vai ao encontro daquilo que se fazia dantes: fechar aos domingos. Muito bem. O domingo era o dia do Senhor traduzido no sétimo que segundo as Escrituras Ele descansou. Depois a vermelha sociedade de consumo, retirou aos trabalhadores o repouso semanal, transformando-os em escravos ao serviço de uma dinâmica bárbara que os quer esgotados e no limite das suas condições físicas e humanas. “Amochem se querem comer”-  é o ditame imperativo da nova ordem económica.      

         - “Achatar a curva” parece que não tem produzido efeitos. Já passámos os 200 mil casos de coronavírus e as mortes não param de aumentar; só ontem 78 óbitos situando agora em 3181 vítimas. Enquanto isto, a Ordem dos Médicos produziu um parecer que praticamente confirma o que eu aqui revelei: estão já a salvar vidas por idade do paciente, os velhos saem deste mundo primeiro e depois os de meia idade e no fim os jovens. Como se na prática soubéssemos antecipadamente o dia e a hora em que morremos. Se assim fosse, não havia óbitos antes dos setenta oitenta anos. E ainda: Marcelo que está na velhice, terá mais chance de viver que o empregado do lixo da Câmara Municipal de Lisboa? Alguém me esclarece? 

         - Fui ao mercado dos pequenos agricultores. Ao contrário do que imaginava, estava às moscas. Na passagem pelo Lidl não havia filas à porta. Nas ruas corriam muitos carros e os condutores pimpões exibiam um ar de reis montados no trono. Depois do dia glorioso de ontem, a escrita adaptou-se saindo hoje cinzentona. Escrevo no salão diante da lareira a crepitar. Não foi frio que me levou a acendê-la, foi o rumorejar do lume em parceria com o silêncio opaco deste dia. Chove. Por Deus: curva achata-te.