domingo, novembro 22, 2020

Domingo, 22.

O desnorte em que vivemos, nos fluxos de ordens, decretos, esquemas, muita parra e pouca uva, hesitações, para a frente e para trás que chega de S. Bento filtrados por Belém, traduz todo um esquema invulgar que desorientação, revolta, conducente ao contraditório pela maior parte da população. Quer-me parecer que o que nos impingem não são factos científicos, números correctos, são diabruras políticas. António Costa, forçado a pôr de lado a magia, perdeu as qualidades de que era mestre. Ainda aplica, aqui e ali, os seus laivos de prestidigitação, mas já não convence, a plateia já não aplaude, o espectáculo terminou. Eu, depois de ter visto sacos com mortos no chão dos corredores nos hospitais, ao lado de pacientes em camas, perdi de toda a confiança na eficácia de um governo que não soube preparar a segunda vaga do coronavírus. No Verão desmontaram as tendas de campanha, Costa tirou 15 dias de férias, com ele outros dirigentes, as normas de higiene levantadas, um sopro de irresponsabilidade varreu o SNS, o mundo ia voltar às sopas quentes do turismo em massa, onde Costa apostou todas as moedas que tinha no bolso. Portugal estava rico, a indústria, embora minoritária, florescente, o país havia entrado na era Costa do progresso e da afirmação internacional, muitos portugueses de eleição e inteligência acima da média, ocupavam cargos importantes por essa Europa da UE fora. Para que tudo parece-se o que não era, cobriu-se com uma manta de plástico preta, os dois milhões e meio de pobres, a miséria do SNS, do ensino, as prisões encheram-se devido à justiça democrática mais violenta que a fascista, os velhos apodreciam nos lares, as crianças eram abandonadas à sua sorte, o PIB não diminuía a dívida que esteve sempre pelos 120%. O que na realidade interessava era a aparência, era a palração que adormece, entontece, abnega. A Coravid-19 veio mostrar o Portugal próspero que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa nos venderam durante quatro longos anos tocados a selfies e sermões da montanha, as assimetrias nunca foram tão revoltantes, as associações usurpadoras dos bens públicos instalaram-se às dezenas, a corrupção cresceu despudoradamente, vive-se à conta do que vem de fora, como no séc. XVIII, como no século passado, como ontem. E todavia, os ricos aumentaram, a classe política também, o sub-mundo infestante, como teia medonha, estendeu os seus tentáculos por todo o lado, a administração pública é ordinária e ineficiente, o povo não caminha, vagueia. A informação foi ocupada por funcionários às ordens dos chefes e dos interesses financeiros, a televisão tomou o lugar dos encarregados de educação, é ela que orienta o interesse público, instrui o idiota, alcandora o inútil, louva o ignorante. A inteligência , a sabedoria, a sagesse, o equilíbrio foram sugados pelo poder do dinheiro, do futebol, do sexo vendido a preço de saldo na internet, deuses de um mundo em decadência onde não dá gozo nem encanto viver. A impressão que tenho ouvindo Dupond & Dupont, não é o coronavírus nem o sofrimento e morte que ele provoca o mais importante, mas o distúrbio que ele provoca na economia e no SNS.  Foi a obsessão pelo riqueza que fez com que estejamos nas condições que ninguém aprova quando os aeroportos e fronteiras continuam abertos a todo o mundo, as férias de emigrantes, o laxismo autárquico, o desleixo da juventude egocêntrica, a ignorância das pessoas nos transportes, nos recintos fechados, os centros comerciais a funcionar em pleno, etc. etc. Nesta segunda vaga foi dada a prioridade à economia e o resultado não podia ser pior. Presidente da República e primeiro-ministro são os responsáveis e julgo que ambos vão ser condenados no momento próprio. A ambos, ouvindo-os ditar leis e repressões, identificamos no tom o refinamento a caminho de uma pequena ditadura democrática.

         - Costa está nas mãos do PCP, não pode proibir o congresso do partido, mas pode reduzir oito milhões de portugueses a confinamento. O PCP por seu lado, quer mostrar a força que o Chega (ainda) não possui, mas com a publicidade que todos os partidos lhe fazem, não tarda a comandar as tropas da esquerda dispostas no outro extremo. Os partidos passam à frente dos cidadãos, estes amocham enquanto aqueles são intocáveis. Aos partidos permite-se tudo, aos cidadãos quase nada. Pergunta-se quem fez a lei que todas estas arbitrariedades permite? O João costuma dizer que a política está em todo o lado; eu contraponho por isso a cultura não está em lado nenhum. 

         - De contrário observemos. Com o actual primeiro-ministro a política apalpa-se primeiro, nunca nada é claro, diversas janelas ficam abertas por onde se podem sumir uns quantos e só no limite ela se torna objectiva. Só compelido, ameaçado, Costa avança. Note-se neste pormenor. O Natal está por todo o lado, não digo anulado, mas impedido, suspenso. A própria Igreja vai cancelar a Missa do Galo, mas o governo adia a decisão de confinar na quadra natalícia por medo de perder votos. Não tem coragem de dizer com tempo o que se propõe fazer. Está entalado entre o seu peso político futuro e a governação pragmática que detesta.   

         - Macron e a liberdade de expressão. Paris encheu-se num protesto de rua de jornalistas e homens da informação contra um novo projecto de lei de Segurança, que atenta contra a liberdade de expressão. As manifestações deram em confrontos directos com as forças da ordem. Ninguém admite “seja proibido filmar membros das forças de segurança com intenção de prejudicar a sua integridade física ou mental” como diz o projecto, entendido pelos homens da informação como atentado à liberdade de imprensa e aos direitos individuais. Com quem se mete Chou Chou! 

         - Ontem, desmotivado para o trabalho, depois da ida ao mercado dos pequenos agricultores, ocupei-me em fazer dois pratos para arquivo no congelador. Embalado fiz meia dúzia de scones com coco que não saíram muito bem. Deve ter sido maldição dos ingleses por ter desvirtuado o acompanhamento do seu querido tea. Bref. A Blacka subiu ao telhado e, assustada, não sabia como de lá sair. Tive que montar sobre um escadote para lhe dar ajuda. Quando se viu nos meus braços, respirou de alívio e provavelmente deve ter dito para o seu pêlo: “Este tipo não serve só para me dar de comer contrariamente ao que eu supunha.” O tempo refrescou, o sol guarda-se na linha do horizonte, um véu de tristeza desce com a noite, silêncio e inquietude.