quinta-feira, novembro 12, 2020

Quinta, 12.

O mundo atravessa uma se não a mais complicada fase depois da Segunda Grande Guerra. Não houve tiros, prisões, campos de extermínio, cidades destruídas, mortes em massa, mas estamos numa guerra surda, destrutiva do ser humano, trágica porque nos elimina por dentro, consumindo cada célula, cada pedaço de nós onde o equilíbrio e a harmonia antes reinava, tornando-nos revoltados sem sabermos com quem, tiranos, desconfiados do nosso semelhante, fixados no nosso umbigo, numa agonia lenta que espreita a morte em cada fragmento de nós.  O mundo está suspenso, as actividades humanas ao ralenti, a economia a derrapar, imensos sectores a desaparecer, a vida nos  seus aspectos palpitantes a morrer, milhões de pessoas condenadas a ficar às janelas das suas casas minúsculas a olhar o vazio das praças, das ruas antes a fermentar de gente, por meses, por anos ninguém sabe, ninguém alvitra uma data para que o mundo volte a girar em torno do dia seguinte, com perspectivas de nos encontrarmos de frente, olhos nos olhos, sem a máscara de dor e espanto que nos modifica o semblante e nos irmana num grito angustiante que se entrepõe entre nós e nos faz ser outro na atarantação dos dias, dos caminhos que fogem dos nossos pés, da tibieza da voz, do olhar... do olhar que nos olha do fundo do receio e do medo e nos afunda nos abismos desconhecidos para onde a vida se retirou e os espectros, os cadáveres de outras pandemias se arrastam sentenciados à deriva ad eternum. As manhãs que teimam em nascer, já não abrem as suas asas cintilantes, já não trazem as preces em dias felizes, em futuros banhados das auroras boreais, não são ciclos que criem vida e renovam a criação, são horas sonâmbulas, arrastadas de mágoas, sem esperança nem concomitância, chegam nocturnas, sem forças, sem desafios, paradas no tempo incerto que banha a humanidade que na terra hoje habita à espera da morte anunciada. De súbito, encontramo-nos todos na plataforma de partida, sem bagagem nem prerrogativas sociais, olhando uns para os outros como personagens de um tempo ido, de uma terra onde apesar de tudo alguns foram felizes, e os ditadores não conseguiram quebrar os corações que armazenam a compaixão e o amor. Por sobre tanta dor, tanto luto, tanta desesperança, espreita a lepra do poder, a foice do tirano. Uns quantos, deuses de uma época descrente, estendem tentáculos para abafar as vozes que irrompem do medo e da desesperança, da agonia diária em que caiu mais de metade da população mundial, para apelar aos valores humanos que nos unem debaixo do céu comum a enfrentar o sanguinário. Que assiste, lá longe ou aqui ao lado, hirto e orgulhoso, ao espectáculo da submissão dos povos de diferentes nações. Ele dirá se é que o não o disse já: “Os dados estão lançados!”