terça-feira, junho 16, 2020

Terça, 16.
Pois é. Os comboios continuam vazios, o metro equilibrado de passageiros, os centros comerciais com pouca gente, o Corte Inglês onde comi, com meia dúzia de gatos pingados, o Rossio às moscas e assim por diante. Às vezes penso que as pessoas disseram adeus ao Passe Navegante (o único baluarte até aqui da esquerda e de Costa juntamente com a boa conduta na invasão do coronavírus no intervalo do Mágico que já voltou em força e mais refinado), e passaram a utilizar o carrinho. Porque não é possível seja de outro modo, tendo em conta que a querida economia é mais forte que qualquer medíocre vida humana. Pois é, pois é. Estive na Brasileira, claro, com os do costume. Tendo chegado cedo, encontrei o nosso veterano Castilho agarrado aos jornais que falam do PIB, dos juros, da perda do poder de compra e anunciam a miséria que aí vem não tarda. Gramei a pastilha para cima de uma hora quando chegaram o Carmo, a Tereza, Corregedor, o Zé Andrês e mais não sei quem. O Castilho só vê cifrões e, enquanto o João só fala de política, ele todos os sons que emite é em nome da riqueza e seus apaniguados guapos. Eu tolero-lhe o radicalismo, porque o homem, do alto dos seus 85 anos, está ali para as curvas. Vem todos os dias do Estoril onde mora, deixar a mulher no seu estabelecimento ao Cais do Sodré - o tal onde o Mágico vai com frequência e ultimamente para alargar casacos e calças. Eu gosto de Costa assim. Verdade seja dita que o homem é normal, exerce o cargo sem ser em bicos dos pés, sem peneiras nem arrogâncias excessivas. Parece, neste aspecto, um político dos países nórdicos, talvez com um toque de ambição e pendor partidário a assomar às bochechas redondas. Ele disse outro dia que os ministros e secretários de Estado fazem o trabalho prático da governação e ele reserva para si a política. Ou seja traveste-se de político – e a tragédia instala-se.

         - Saí sob chuva miudinha, voltei com a tarde aberta inundada de sol e até calor. Amanhã não deixarei este recanto encantado. Vou trabalhar no Matricida que cada vez me absorve mais. Espero encontrar a serenidade com uma boa noite de sono de modo a não ter que enfiar um Valdisper. Há, contudo, um silêncio de chuva a lardear por aqui. Porque a chuva tem um ruído silencioso antes das primeiras bátegas e mais do que isso propaga um odor e uma atmosfera sensível que nos escora ante a iminência da sua chegada. Cito Laforgue:
O pressoirs des vendanges des grands soirs!
Layettes aux abolis,
Thyrses au fond des bois!