Sexta,
5.
O de
confinamento, grosso modo, tem sido entendido e bem aceite pelos portugueses. Os
transportes públicos não andam como dantes, mas há mais movimento e não vi
ninguém que não tivesse máscara, desrespeitasse o distanciamento e muita gente
a desinfectar as mãos com frequência utilizando álcool ou outro produto que
traziam no bolso. Por todo o lado, encontrei turistas, um aluvião modesto mas
já presente. Lisboa toma as rédeas do seu quotidiano ainda que este seja uma
sombra do que era.
- Desejava tanto voltar à disciplina
da escrita! Mas ando aéreo, tentando compreender o todo em vez de ir juntando
palavras pouco a pouco para ter o conjunto. Deveria concentrar-me na infância
de Semyon, mas o meu espírito dispersa-se e quer abarcar a história como se
fosse um dado existente e nada houvesse a improvisar. Vou, portanto, tentar
mergulhar na infância do meu herói sem pensar nos capítulos subsequentes,
imaginando que o romance não conta mais que os primeiros anos do pobre rapaz. Até
porque o que aí ficar registado, vai ser a chave que no último capitulo abrirá
o enigma de O Matricida. Porque se
trata de um verdadeiro mistério psico-social.
- Sempre abraçado à minha roçadora,
fui em segundas núpcias roçar a erva do lado das figueiras que me pagaram com o
aroma inebriante dos seus frutos. Quanta recordação assomou do recanto
sensorial de mim! Oh, cala-te. Não tragas ao instante esses longínquos tempos
quando tudo se te oferecia sem que fizesses o mínimo esforço. Eras jovem,
coxinho, coitadinho, e bonitinho. Tinhas tudo e todas e todos a teus pés e
muitas vezes o orgulho que te banhava, impedia a loucura de que o teu cérebro
ainda hoje se abastece. Vivias descontraidamente quando meio mundo vegetava e
os teus olhos por misericórdia eram desviados dessa realidade hoje olvidada. Antes
não tinhas a noção da tua fragilidade, a sensualidade fazia por ti o caminho de
retorno à solidão tua companheira. Do alto desse pináculo de felicidade,
olhavas o mundo, o próximo e o distante, com a indiferença de quem não tem
consciência da desumanidade que o habita. Agora, aligeirando processos e
paixões, abasteces-te à sombra de uma figueira - fiel depositária das emoções,
das lágrimas e sofrimento que nunca morrem -, dos elementos essenciais ao teu
viver.
- O coronavírus também se presta à
fantasmagoria risível em que se transformou o mundo de hoje, na medida em que
nos afasta dos tais afectos tão queridos a Marcelo – o grande cómico da
conjuntura.