sexta-feira, junho 05, 2020

Sexta, 5.
O de confinamento, grosso modo, tem sido entendido e bem aceite pelos portugueses. Os transportes públicos não andam como dantes, mas há mais movimento e não vi ninguém que não tivesse máscara, desrespeitasse o distanciamento e muita gente a desinfectar as mãos com frequência utilizando álcool ou outro produto que traziam no bolso. Por todo o lado, encontrei turistas, um aluvião modesto mas já presente. Lisboa toma as rédeas do seu quotidiano ainda que este seja uma sombra do que era. 

Cena de metro nos dias presentes. 
         - Desejava tanto voltar à disciplina da escrita! Mas ando aéreo, tentando compreender o todo em vez de ir juntando palavras pouco a pouco para ter o conjunto. Deveria concentrar-me na infância de Semyon, mas o meu espírito dispersa-se e quer abarcar a história como se fosse um dado existente e nada houvesse a improvisar. Vou, portanto, tentar mergulhar na infância do meu herói sem pensar nos capítulos subsequentes, imaginando que o romance não conta mais que os primeiros anos do pobre rapaz. Até porque o que aí ficar registado, vai ser a chave que no último capitulo abrirá o enigma de O Matricida. Porque se trata de um verdadeiro mistério psico-social.

         - Sempre abraçado à minha roçadora, fui em segundas núpcias roçar a erva do lado das figueiras que me pagaram com o aroma inebriante dos seus frutos. Quanta recordação assomou do recanto sensorial de mim! Oh, cala-te. Não tragas ao instante esses longínquos tempos quando tudo se te oferecia sem que fizesses o mínimo esforço. Eras jovem, coxinho, coitadinho, e bonitinho. Tinhas tudo e todas e todos a teus pés e muitas vezes o orgulho que te banhava, impedia a loucura de que o teu cérebro ainda hoje se abastece. Vivias descontraidamente quando meio mundo vegetava e os teus olhos por misericórdia eram desviados dessa realidade hoje olvidada. Antes não tinhas a noção da tua fragilidade, a sensualidade fazia por ti o caminho de retorno à solidão tua companheira. Do alto desse pináculo de felicidade, olhavas o mundo, o próximo e o distante, com a indiferença de quem não tem consciência da desumanidade que o habita. Agora, aligeirando processos e paixões, abasteces-te à sombra de uma figueira - fiel depositária das emoções, das lágrimas e sofrimento que nunca morrem -, dos elementos essenciais ao teu viver.


         - O coronavírus também se presta à fantasmagoria risível em que se transformou o mundo de hoje, na medida em que nos afasta dos tais afectos tão queridos a Marcelo – o grande cómico da conjuntura.