segunda-feira, junho 22, 2020

Segunda, 22.
O carro é tão contraditório como o seu proprietário. Há pelo menos dois anos existe entre em nós uma espécie de jogo do gato e do rato. Por exemplo. De manhã quando me aproximo para o pôr a trabalhar, encontro-o ainda a dormir de portas trancadas e chave na ignição. Volto para trás e vou buscar a segunda chave que destranca todas as portas ao mesmo tempo. Depois, se tenho precisão de qualquer coisa da bagageira, o gajo finge ressonar e não me dá acesso à abertura. Nessa altura volto a fechar o circuito e, do lado de fora, tento novamente. Sua excelência, sorri e condescendente consente que levante a porta traseira. Se viajo com alguém como foi o caso da Marília e do João a Badajoz, o baile não tem parança. Marília ficou trancada no interior várias vezes e nem as diversas tentativas para a arrancar do assento foram alcançadas. Então volto a accionar a chave e por milagre a porta do seu lado abriu. O João do lado aposto, está agora em apuros para sair. Tenta-se da parte de fora e nada. Fecham-se todas as portas, retira-se a chave da ignição e ensaia-se novamente fora do automóvel. Ouve-se um estalido, aparentemente foram desbloqueadas as quatro portas. Mentira a da frente do lado do condutor não obedeceu. Resumindo: nunca as quatro portas e a da mala estão de acordo para que os viajantes possam sair e entrar sem empecilhos técnicos. Dir-me-ão; é fácil vai ao mecânico. Não sei, tenho dúvidas. Porque este jogo é para mim um desafio, uma comédia divertida, um confronto com a técnica por natureza fiável, neste caso dissonante com o que se diz e espera dela – e esta simples revolta é verdadeiramente para mim apaixonante.

         - Fui a um lugarejo próximo daqui chamado Cabanas. O sítio é praticamente um núcleo de casario construído à beira da estrada que o atravessa, barulhento e desordenado urbanisticamente. A loja de artigos para piscina fica à entrada e dentro dela só é permitida uma pessoa apesar do espaço ser amplo e no interior a atender estar apenas a proprietária. Bom. Na volta, parei num supermercado para comprar meia dúzia de camarões. Aí havia um espaço-café que não tinha ninguém. Abanquei a uma mesa junto à vidraça que dava para o parque de estacionamento. A manhã, daquele lado da natureza, parecia navegar entre sombras e um vago sorriso do sol. Não fazia ainda calor, poucos clientes no super. Então não sei o que se passou, foi como se o meu cérebro tivesse voado dali para um mundo de quietude e inquietação que a arte traz quando nos impregnamos dela. O facto é que ainda agora estou no início de O Matricida e já as histórias se perfilam para o livro seguinte Fantasmagorias. Devo ter estado ausente uma boa meia-hora, porque quando voltei àquele espaço, estava a loja bem composta de clientes e o sol tinha rodado de posição e encharcava a mesa de onde a chávena havia desaparecido sem que eu desse conta.

         - Leio no Público online: “Mexia suspeito de corromper um ministro, um secretário de Estado e um director-geral.” Quem é o verdadeiro criminoso nesta situação? Para mim os governantes que se deixaram corromper.


         - Um dia de calor rasgado. Depois do almoço, a seguir a uma soneca, fui levantar da tona da água as algas que o inverno alimentou. A água está coberta por uma névoa que o cloro não limpou talvez porque eu não quisesse gastar em energia o que a operação exigiria. Quando ligo o motor de tratamento, vejo logo a carteira do empregado dos chineses a insuflar e aí stop.