Terça, 16.
Estive
quatro horas de olhos postos no Canal 2 francês a seguir, abasourdi, o desaparecimento da catedral de Notre-Dame engolida pelo fogo. Uma grande comoção tomou conta de
mim, como se tivesse perdido alguém que me era caro e o seu desaparecimento
cavasse um abismo de saudade e ternura infindáveis. Quando estou em Paris,
passo (passava) diante dela quase todos os dias, parando para a admirar a
beleza arquitectónica e levantar uma prece ao Criador. O ano passado, pela
primeira vez, fui admirá-la num passeio de hora e meia pelo Sena. Há mais de
quarenta anos que, graças à Annie, fico um mês na capital francesa e Notre-Dame
era o local que não dispensava para recolhimento nas horas de cansaço, o último
dos quais há dois anos. Gostava de ficar ali, naquela penumbra, recolhido em
mim, recruzando o olhar pelas alturas da nave central de uma pureza
majestática, alheio ao ruído dos turistas chineses, quais gafanhotos, rápidos, saltando
de um extremo ao outro da catedral, olhando sem ver e logo fugiam porque o
tempo para eles não merece o detalhe e as emoções não são para ali chamadas. Há
um tempo que acompanhava os trabalhos de consolidação da zona da flecha que,
segundo me diziam os amigos, estava num estado de degradação impressionante. A
Igreja havia encontrado com imenso esforço 150 milhões de euros para as obras, mas eram precisos outros
tantos para acudir ao monumento no todo. Monumento que já Victor Hugo reclamava
fosse intervencionado, mas que os Estados empurrados pela nossa petrificada
União Europeia, tudo fazem para separar as águas, quero dizer, olvidar os
alicerces cristãos que formam a Europa. Apesar de Notre-Dame ser o símbolo
perene de Paris, que duas guerras respeitaram (1ª e 2ª), que a Comuna tentou
incendiar, mas não conseguiu e mais prosaicamente ser a solt machine do turismo de massas. O impressionante é a tragédia
ter ocorrido no início da Semana Santa, e as cinzas de uma memória colectiva
com oito séculos de história, apesar do horror, segundo os bombeiros, ser
possível manter intactos os alicerces principais da velha Senhora. Emmanuel
Macron, que há doze anos pediu para ser batizado e, ao que parece rapidamente
se tornou agnóstico, garantiu que o Estado francês vai-se ocupar da sua
reconstrução. Que a rosácea gótica no transepto sul que escapou às chamas, seja
o símbolo da promessa a cumprir. A verdade porém, é que a Europa está cada vez
mais pobre culturalmente, suplantada pela boçalidade do futebol e a vida
presente alimentada nos sonhos ocos de riqueza, que esta tragédia era de todo
dispensável. A grandeza de Notre-Dame é o sacrário onde mantemos em permanência
o coração em Deus.
Notre-Dame vista do rio Sena |