sábado, abril 06, 2019

Sábado, 6.
Nestes dias vividos por assim de dizer em família, eu que sou o oposto a essa instituição dúplice, mas que assumo apreciar quando entre amigos por mim escolhidos e por eles estimado, sendo esta a melhor e mais pura ideia de família, diverti-me imenso. A Annie, coitada, está cada vez mais taralhouca e muitos são os episódios que me desconcertaram e divertiram, não aceitando eu ou aceitando como natural, que com a idade nos tornemos uma sombra do que fomos, sem que com isso, à maneira católica do coitadinho, tenhamos de encarar os factos delicados da velhice com o gesto da caridade que em vez de afagar acentua o fosso geracional. Porque mesmo velhos não perdemos necessariamente o humor, nem o espírito criativo se afasta do jovem que cada um de nós foi. Recordo mais uma vez a célebre frase de Oscar Wilde: “O drama da velhice é que não envelhecemos por dentro.” Vem isto a propósito de uma cena ocorrida durante a noite. Estando eu a dormir o mais profundo sono dos justos, eis que acordo com a Annie a pedir desculpa por se ter enganado na porta. Acontece que a casa de banho dos hóspedes, fica mesmo ao lado do quarto que eu reservei para ela e o marido. Readormeci de imediato. Daí não sei a quanto tempo, desperto com um “ai” tremendo porque senti que alguém se deitava ao meu lado. (Travo aqui por não conter ainda agora as gargalhadas.) Era a Annie “pardon, pardon, Helderrr” e ala, tonta, em busca do seu aposento. No dia seguinte ao pequeno-almoço “em família”, contei o sucedido, acrescentando os meus sentimentos. Expliquei eu que quando dei conta que uma mulher se deitava na minha cama, estranhei e rebobinei a fita do tempo em busca da última data que tal me aconteceu. Depois pensei que poderia ser um fantasma travestido para me excitar. Ora, como dizem que os fantasmas são masculinos, hesitei, estupefacto, a ver no que dava aquela investida nocturna. Apreça-se a Annie: “Pois, o que tu querias era que tivesse sido um homem!” Gargalhada geral. O episódio porém, foi tão divertido que levei mais de uma hora a readormecer atacado de riso: “Uma mulher a enrolar-se neste corpinho de seda, oh, oh, oh!”, repetia e ria e ria.

         - Leio nesta altura dois autores completamente opostos: Green e Matzneff e entre eles Goethe e o seu maravilhoso As Afinidades Electivas com prefácio e notas de João Barrento.

         - Cavaco Silva deixou as catacumbas onde depositou a sua máscara sinistra, para se insurgir contra as horas abolidas no SNS, a descida do IVA, a supressão de impostos aos mais desfavorecidos, e mais não sei o quê, tudo em nome da economia! António Costa respondeu à maneira ao contabilista pelintra e ganancioso, raivoso e vingativo, apesar de se dizer católico e a mulher coleccionar presépios e serem ambos devotos da Senhora de Fátima, ele que não pode viver com 10 mil euros de reforma e mais as benesses de ex-Presidente da República (Ramalho Eanes recusou tudo aquilo, vivendo do salário de general), e nunca fez nada de substancial para diminuir as desigualdades; pelo contrário afundou o país num miserabilismo social à moda de Salazar, vem agora ressuscitado dos despojos da raiva botar pareceres que ninguém lhe encomendou. Volte para o sarcófago, senhor doutor-economista-professor-sua-excelência-ex-Chefe de Estado-ex-Primeiro-Ministro-ex-vida fora da qual os vermes rastejam à sombra dos sóis enrabichados de arrogância e fique sabendo que para o senhor Aníbal ter a aposentação que tem, há milhares de agricultores no Alentejo que usufruem de reforma 120 euros.

         - O senhor António, o homem que há anos vem gradar o terreno, apareceu para o trabalho. Mandei-o de volta argumentando que enquanto as múltiplas florinhas estiverem viçosas, não permitirei que lhes toque. Ele surpreendeu-se e eu expliquei: “O campo florido e verdejante, é indispensável às abelhas e pássaros e deste modo necessário à biodiversidade.” Logo o bom do homem: “Olhe que não é isso que eles (referia-se aos funcionários da Câmara) querem. “Quero lá saber do que dizem os autarcas incultos e autómatos. Enquanto as flores estiverem belas como estão, não gradearei o terreno.”


         - Tempo invernal. Tenho a lareira acesa no salão e é em face dela que leio e escrevo estas linhas.