Quarta, 17.
O
pináculo de Notre-Dame com 93 metros, erguia-se acima da malha urbana da cidade
indicando o caminho para a catedral. Era uma obra do séc. XIX notável de encanto,
uma teia no interior de madeira entrelaçada. Dizem os técnicos que foi ali que
o fogo começou estando em reparação. Não escapou, portanto, à fúria das chamas
e as imagens que correm na Internet, são o testemunho a par da emoção da
assistência quando a flecha tombou lambida pelas chamas: “Oh! Oh non, c´est pas
possible!” Outras peças sem preço foram salvas milagrosamente como a Coroa de
Espinhos que S. Luís comprou no suposto que foi a que Jesus Cristo levou ao
Calvário, o grande órgão que escapou vá-se lá saber porquê, a cruz do altar,
intacta, no meio das chamas, os Evangelistas retirados como muitas outras obras
no dia anterior na sequência dos trabalhos em curso.
- A propósito, dizem-me que nas redes
sociais há quem se regozije com o desaparecimento de Notre-Dame. É possível. O
mundo está cheio de idiotas, de brutamontes que só sabem de futebol. São eles
que profanam os cemitérios judaicos, fazem o elogio da violência sectária,
apregoam a vinda de Hitler e satanás, mal sabem falar, mas sabem de cor todas as
regras do futebol dentro das quatro linhas.
- Por cá mais uma greve. Esta vai
ensandecer os portugueses para quem o popó é mais importante que comer, dormir,
copular e assim. Os homens que abastecem os aeroportos, os postos de gasolina,
bombeiros, hospitais, etc. entraram em greve por tempo indeterminável. Exigem
ser aumentados e há muitos anos que andam em negociação com os patrões que os
querem escravos até ao fim, pagando-lhes a gorjeta de 630 euros por mês! Claro
que estou do seu lado. Como é possível pagar um ordenado tão miserável por um
esforço que imagino hercúleo! É a velha mania de Portugal que continua a seguir
a política salazarista de baixos salários e altos rendimentos que vertem apenas
para um dos lados.
- O senhor Aníbal que devia estar
calado usufruindo da sua reforma milionária mais as benesses que nós lhe
pagamos com língua de fora, veio agora a terreiro dizer que nos devíamos
começar a preparar para trabalhar até aos 80 anos! Imaginem o exército de
trabalhadores e funcionários públicos de bengala, algália, a mancar à direita e
à esquerda, a babar-se e a resmungar a caminho das repartições públicas e
empresas privadas. O rendimento deste batalhão de assalariados decerto não
daria para pagar metade da aposentação do senhor Aníbal. A menos que sua
excelência enfileirasse em cadeira de rodas e molhinhos de saliva aos cantos da
boca, os rabugentos trabalhadores. O cenário é, no mínimo, cativante.
- Tal como aconteceu há uns anos
quando os Couto por aqui vinham com frequência, um simpático mocho deve ter
entrado por engano pela chaminé do salão. Naquela altura, Couto e eu,
conseguimos libertar o ser delicioso que logo se achou em liberdade deu largas
à alegria. Desta vez, pedi ao Fortuna que me viesse ajudar a salvar outra
espécie ou talvez a mesma, que há duas noites pedia socorro. Fortuna, 84 anos,
deita-se no chão de tijoleira e tenta desesperadamente retirar a ave. Não
conseguindo, convoca por telemóvel o artista brasileiro que eu pus à sua guarda
que prontamente aparece. Ficam os dois largo tempo em operações falhadas, a
placa de ferro não cede ao martelo e às pressões. Então Fortuna lembra-se de um
amigo. De novo através do telefone portátil, entra em cena um homem de
cinquenta anos, elegante de físico, ar de filósofo, munido de todo o material necessário
ao salvamento do pássaro. Logo desloca as placas de ferro e com escovas
sucessivas enroscadas em varas, faz descer da chaminé poeiras e cinzas. Nesta
operação ouve-se a agitação do espécime, ele sente as suas unhas agarrando-se
às pontas duras da escova. Mas de pássaro disposto a sair, nada. Ensaia-se então
enfiar por ali acima apenas as varas, agitando-as em todas as direcções de
forma a provocar a descensão do bicho. Em vão. Acordou-se, por fim, não
recolocar as chapas de ferro de modo a que ele descesse quando lhe aprouvesse.
Aspira-se a cinza, arruma-se o material, e tudo pronto seguimos para a saída
onde estão as três viaturas que trouxeram a equipa de salvadores. O último dos
veículos, uma camioneta, bloqueia todos os outros. Quando o homem elegante põe
o carro em andamento, este recusa-se com um sufoco seco a trabalhar. “Oh!,
exclamamos todos à uma. E agora?” Nada que o telemóvel não solucione. Daí a
meia hora, aparece outro homem que tinha uma pequena oficina em Quinta do Anjo.
Prontamente se põe debaixo do carro, retira uma pequena peça, ordena ao
proprietário do imobilizado que dê à ignição e, por magia, a furgoneta põe-se
em movimento. Resolvidas todas as situações, ficámos em convívio até às seis da
tarde. Histórias e mais histórias atropelam-se, todas deliciosas, marcando o
tempo convivial que a moderna tecnologia dos telefones produziu e a tarde cheia
de sol selou. Assim uma rede de afectos cresceu num ápice, provando que a
solidariedade acontece ao dobrar das horas, num sítio isolado, num tempo lesto
no meio do campo que emerge em flor. Por fim, cada um partiu com um saco de
limões ou laranjas. E para que tudo finde em beleza, resta-me esperar que o
aventureiro se mostre ao mostrador da lareira.