quarta-feira, abril 17, 2019

Quarta, 17.
O pináculo de Notre-Dame com 93 metros, erguia-se acima da malha urbana da cidade indicando o caminho para a catedral. Era uma obra do séc. XIX notável de encanto, uma teia no interior de madeira entrelaçada. Dizem os técnicos que foi ali que o fogo começou estando em reparação. Não escapou, portanto, à fúria das chamas e as imagens que correm na Internet, são o testemunho a par da emoção da assistência quando a flecha tombou lambida pelas chamas: “Oh! Oh non, c´est pas possible!” Outras peças sem preço foram salvas milagrosamente como a Coroa de Espinhos que S. Luís comprou no suposto que foi a que Jesus Cristo levou ao Calvário, o grande órgão que escapou vá-se lá saber porquê, a cruz do altar, intacta, no meio das chamas, os Evangelistas retirados como muitas outras obras no dia anterior na sequência dos trabalhos em curso.  




         - A propósito, dizem-me que nas redes sociais há quem se regozije com o desaparecimento de Notre-Dame. É possível. O mundo está cheio de idiotas, de brutamontes que só sabem de futebol. São eles que profanam os cemitérios judaicos, fazem o elogio da violência sectária, apregoam a vinda de Hitler e satanás, mal sabem falar, mas sabem de cor todas as regras do futebol dentro das quatro linhas. 

         - Por cá mais uma greve. Esta vai ensandecer os portugueses para quem o popó é mais importante que comer, dormir, copular e assim. Os homens que abastecem os aeroportos, os postos de gasolina, bombeiros, hospitais, etc. entraram em greve por tempo indeterminável. Exigem ser aumentados e há muitos anos que andam em negociação com os patrões que os querem escravos até ao fim, pagando-lhes a gorjeta de 630 euros por mês! Claro que estou do seu lado. Como é possível pagar um ordenado tão miserável por um esforço que imagino hercúleo! É a velha mania de Portugal que continua a seguir a política salazarista de baixos salários e altos rendimentos que vertem apenas para um dos lados.

         - O senhor Aníbal que devia estar calado usufruindo da sua reforma milionária mais as benesses que nós lhe pagamos com língua de fora, veio agora a terreiro dizer que nos devíamos começar a preparar para trabalhar até aos 80 anos! Imaginem o exército de trabalhadores e funcionários públicos de bengala, algália, a mancar à direita e à esquerda, a babar-se e a resmungar a caminho das repartições públicas e empresas privadas. O rendimento deste batalhão de assalariados decerto não daria para pagar metade da aposentação do senhor Aníbal. A menos que sua excelência enfileirasse em cadeira de rodas e molhinhos de saliva aos cantos da boca, os rabugentos trabalhadores. O cenário é, no mínimo, cativante.  


         - Tal como aconteceu há uns anos quando os Couto por aqui vinham com frequência, um simpático mocho deve ter entrado por engano pela chaminé do salão. Naquela altura, Couto e eu, conseguimos libertar o ser delicioso que logo se achou em liberdade deu largas à alegria. Desta vez, pedi ao Fortuna que me viesse ajudar a salvar outra espécie ou talvez a mesma, que há duas noites pedia socorro. Fortuna, 84 anos, deita-se no chão de tijoleira e tenta desesperadamente retirar a ave. Não conseguindo, convoca por telemóvel o artista brasileiro que eu pus à sua guarda que prontamente aparece. Ficam os dois largo tempo em operações falhadas, a placa de ferro não cede ao martelo e às pressões. Então Fortuna lembra-se de um amigo. De novo através do telefone portátil, entra em cena um homem de cinquenta anos, elegante de físico, ar de filósofo, munido de todo o material necessário ao salvamento do pássaro. Logo desloca as placas de ferro e com escovas sucessivas enroscadas em varas, faz descer da chaminé poeiras e cinzas. Nesta operação ouve-se a agitação do espécime, ele sente as suas unhas agarrando-se às pontas duras da escova. Mas de pássaro disposto a sair, nada. Ensaia-se então enfiar por ali acima apenas as varas, agitando-as em todas as direcções de forma a provocar a descensão do bicho. Em vão. Acordou-se, por fim, não recolocar as chapas de ferro de modo a que ele descesse quando lhe aprouvesse. Aspira-se a cinza, arruma-se o material, e tudo pronto seguimos para a saída onde estão as três viaturas que trouxeram a equipa de salvadores. O último dos veículos, uma camioneta, bloqueia todos os outros. Quando o homem elegante põe o carro em andamento, este recusa-se com um sufoco seco a trabalhar. “Oh!, exclamamos todos à uma. E agora?” Nada que o telemóvel não solucione. Daí a meia hora, aparece outro homem que tinha uma pequena oficina em Quinta do Anjo. Prontamente se põe debaixo do carro, retira uma pequena peça, ordena ao proprietário do imobilizado que dê à ignição e, por magia, a furgoneta põe-se em movimento. Resolvidas todas as situações, ficámos em convívio até às seis da tarde. Histórias e mais histórias atropelam-se, todas deliciosas, marcando o tempo convivial que a moderna tecnologia dos telefones produziu e a tarde cheia de sol selou. Assim uma rede de afectos cresceu num ápice, provando que a solidariedade acontece ao dobrar das horas, num sítio isolado, num tempo lesto no meio do campo que emerge em flor. Por fim, cada um partiu com um saco de limões ou laranjas. E para que tudo finde em beleza, resta-me esperar que o aventureiro se mostre ao mostrador da lareira.