sexta-feira, abril 12, 2019

Sexta, 12.
Ontem ao fim da tarde, na companhia do João Corregedor, desloquei-me a Amadora para a vernissage da exposição Cores da Natureza de Teresa Magalhães. Que belo trabalho! Que explosão de cor lançada a uma dúzia de telas do mesmo formato, onde a partir de uma foto tirada à paisagem, a um vazo com flores, a uma árvore, a um chão de florinhas primaveris, a artista, como que integrando o original no todo onde ele parece fazer falta, faz ribombar a beleza estonteante que nos ofusca o olhar, nos sidera de espanto, nos ilumina como seres integrantes da Natureza tout court. O impressionismo que Teresa aplica para nos encandear, é o mesmo de um Monet com os seus nenúfares ou as paisagens humanas que eu vi há duas semanas no museu Thyssen-Bornemisa como o célebre quadro de Edward Hopper, Quarto de Hotel. O domínio da cor é perfeito, como perfeito é o ambiente que aprisiona o quadro e o circunscreve a um diálogo com o visitante onde nos apercebemos do movimento do vento, da luz que passeia, dos fins de tarde quentes, das manhãs frescas, do silêncio que solta perfumes campestres ou que introduz a natureza nos beirais inumanos das grandes cidades. Cada quadro corresponde a um instante, espécie de estado de graça, que a artista imortaliza como se agrafasse um apontamento único, e nos fizesse com elegância e cortesia participar; lado a lado com ela, desfrutando do que será em breve engolido pelas leis da criação e só a sua maestria pode deter e imortalizar. Há, talvez, também no conjunto da exposição, um olhar que parece acenar à paisagem, acompanhado do murmúrio interior que olha com saudade e presságio cada espaço subtraído pela loucura humana às abelhas e ao equilíbrio desordenado das grandes áreas arborizadas. A Teresa Magalhães um vazo com sardinheiras alimentado por mão humana num prédio de vinte ou trinta andares, é suficiente para acreditar que onde os seus olhos pousam a magia da Arte não morre. Talvez tenha ficado suspensa ou mesmo morta a Pop Art que a relançou entre os maiores nomes da pintura nacional. Contudo, esta artista que na Amadora se apresenta está para ficar, acreditando eu na pujança do que admirei. Há um tal vigor em cada pincelada que me apetece dizer como Alejandro Casona: “As árvores morrem de pé.” Diante daquela beleza, fui o sonhador, as suas telas o sonho.

         - A minha relação com a cidade de Amadora, nunca foi venturosa. Logo à chegada, desembarcado do comboio onde viajámos como sardinha enlatada, a impressão que tudo aquilo me causou não é diferente da que tenho há muitos anos, apesar de me dizerem que muito mudou e a modernização dos espaços públicos ser hoje muito diferente. Talvez. Simplesmente o choque é sempre violento. Aquela impressão de coisa construída à pressa, aquele desarrumo de gentes que parecem desajustadas no lugar, aquela balburdia de prédios de cores comidas pela fúria dos habitantes e pela desordem que se pressente por todo o lado, as ruas estreitas ladeadas de edifícios que não podem fazer ninguém feliz, uma gritaria que agatanha as paredes de janelas e varandas de alumínio, as marquises dos anos idos, transformadas em dormitórios, onde assoma o rosto de criança que eu desejava fosse feliz, um chegar à cidade como um cruzamento que não leva a parte nenhuma, sem mesmo se saber onde fica o centro, se quiçá existe, enfim uma grande caserna onde os militares assalariados das multinacionais que os exploram (recentes estudos dizem, por exemplo, que o senhor Mexia, ganhou mais de 6000 mil euros por dia o ano passado, enquanto os lacaios ao serviço dos chineses da EDP não auferem isso num ano inteiro) ali desembarcam, exaustos, para cinco horas de repouso sobressaltado. Eu gostava sinceramente que alguém explicasse aos habitantes da cidade que a dignidade é o principal atributo do ser humano e a democracia (a verdadeira) o sistema que lhe dá consistência e importância.   

         - Voltei tarde a casa no comboio dos noctívagos, apinhado. Obra benfazeja da Esquerda que espero tenha contribuído para aliviar de carros a cidade. Tendo tomado o transporte em Entrecampos, o mesmo lugar onde durante anos, todos os dias, chegava para embarcar rumo a casa, não obstante o adiantado da noite, a estação era um mundo em movimento impressionante. Esta Lisboa onde eu nasci, já não a conheço e, para ser franco, já não é minha, não a desejo. Ao Lidl saiu-lhe a sorte grande, com aquele tiro certeiro de abertura de lojas nas grandes estações de comboios. Um formigueiro de gente, àquela hora, comprava o que seria o triste jantar como se estivéssemos em pleno dia. Apesar do vazio dos espaços, o passeio dos que abrigando-se da noite, rondam os wcs e os corredores frios das gares, o cio estampado no rosto alucinado, era o mesmo da minha juventude. Como o sobe e desce dos negros abandonados ou a suplicante espera que introduz na alma o medo, o desassossego, o golpe de misericórdia do imprevisto, realização do corpo enfurecido, do coração desamoroso, no fio suado das horas expostas ao inesperado. No fundo, na decência que me permite irmanar-me na sua condição, toda aquela via-sacra que decerto se estende noite dentro, não passa de uma suplica, de um aconchego, da emergência não de um corpo, mas de uma companhia que afague a solidão e dê à condição humana a permissão a iniquidade que redime, apazigua, robustece a relação com Deus. Só o pecado nos pode conduzir ao Criador. Deus tem uma especial inclinação pelos pecadores.  


         - Ao lado disto que hoje me absorveu, a política é tão banal e vulgar que me limito a afogá-la na mais insigne e altiva ignoração.