Terça,
22.
Almocei
com o João no Adega da Mó. Antes na Brasileira um pouco de discussão política
porque o homem respira essa arte nobre hoje transformada em arruaça canalha. A
seguir ao repasto ao seu jeito, quero dizer, calmo, sem barulho, cozinha à moda
antiga, simples e boa, um pouco ainda de história do lado das facções
partidárias, de onde a “sopeira” emergiu muito maltratada grosso modo dando-lhe
eu razão porque também não suporto semelhante criatura, fomos dar um passeio
pelo Rossio. Um sol luminoso vinha lá do alto, descendo do Carmo pela encosta
de casario branco encharcando a Praça de D. Pedro IV de uma luz vibrante. Quem
nos observasse, diria tratar-se de dois cavalheiros de antanho, no passo
tranquilo, travado de quando em vez de conversa mais atenta, na atenção aos
passantes, às lojas, ao destino arquitectónico daquele maravilhoso espaço.
Porque o hábito de passear pela cidade perdeu-se há muito tempo, a pressa
tomando o transeunte de uma espécie de loucura que destrambelha os nervos e
força à violência quotidiana. Felizmente que ontem, havia pouca gente: cafés,
restaurantes, o comboio que me levou e trouxe, a Brasileira, o Corte Inglês
onde mais tarde fui tomar um chá com a Alzira e comprar o jantar, por todo o
lado os sítios ofereciam a imagem de um dia feriado.
- Em certo sentido ainda não deixei
Cracóvia. No atropelo dos dias maravilhosos que lá passei, ficou uma nostalgia
que não sobrevive à memória e instala em mim uma corrente de lugares e momentos
repletos de felicidade. Foram tantos os sítios que admirei, as maravilhas que
os meus olhos contemplaram, os caminhos que percorri, que dou-me conta ao reler
as páginas deste diário que muito ficou na sombra como que protegido da
descuidada e rápida espreitadela que regista o todo e não se detém no pormenor.
Ora, sabendo nós que é no detalhe que está a raiz da essência de tudo, olho
através da vegetação o dia em que visitei a mina de Wieliczka, um lugar mágico,
surpreendente, por onde passaram Goethe e João Paul II que nasceu perto.
- Esse dia acordou muito frio,
imitando os anteriores, a neve cobria estradas, caminhos e vastas cercanias por
onde o autocarro 304 serpenteou durante 45 minutos. Não seriam nove horas da
manhã quando cheguei às instalações das antigas minas de sal que remontam há
catorze milhões de anos quando a zona era mar, conhecidas e cobiçadas pelos
tártaros que, diga-se de passagem, semearam o terror e incendiaram Cracóvia em 1241.
Reinava então Casimir com o cognome de o Renovador. Como acima expliquei,
estando num estado desgraçado de dores no pé que não tendo nascido coxinho,
coitadinho, se tornou, comecei por solicitar uma cadeira de rodas, mais a mais
porque sabia que se queria visitar integralmente o empreendimento - e desejava
de facto -, não estava em condições de descer os 327 metros de profundidade da
mina pelas escadas com 390 degraus. A princípio aceitei aquele meio de
transporte, mas breve compreendi que me sentia mal e disse que iria descer como
todos os visitantes de língua inglesa onde me incorporaram a mim e ao casal de
putos portugueses. Sensível, uma dama à moda antiga, veio falar comigo,
propondo-me fazer a visita com uma guia. Logo o grupo avançou por uma porta e
eu fui conduzido a um átrio belíssimo onde aguardei uns minutos pela chegada de
uma senhora de meia idade, professora na cidade e paga pelo Governo para aquele
trabalho três vezes por semana. As galerias até a derradeira, se bem me lembro,
são nove, e eu ia ouvindo as explicações da simpática guia, sentindo-me quase o
presidente dos afectos, mas sem aqueles tiques que enchem de misericórdia o
nosso Presidente. O deslumbre obrigava-me a parar para admirar, tocar, pedir
explicações, numa peregrinação que durou duas horas e meia e me deixou exausto
de dores. A cada andar, era pedido o minúsculo elevador que serviu aos mineiros
que exploraram durante séculos a mina. Um código era pedido à minha paciente
cicerone, o mínimo passo absolutamente controlado. Dentro extasiei-me não só
pela obra humana, como também pela natureza que dentro dos 30 quilómetros de
galerias, operou uma fantástica trama de rocha, sal, água, onde se respiram os
componentes químicos e orgânicos que curam a tuberculose e as doenças
respiratórias. À saída do ascensor, tínhamos que percorrer extensos corredores,
num labirinto de beleza e admiração pelo conjunto. Embalados pela maravilha,
não nos apercebemos sequer que fomos descendo e estamos sem darmos por isso no
último piso onde foi construída uma catedral. Uma catedral soterrânea,
perguntarão os meus leitores! Sim. Um vasto espaço com 12 metros de altura e 54
de largura, levantado entre 1895 e 1927. O mais surpreendente, é que esta
catedral é erigida à rainha kinga (1224-1292) que ocupa o retábulo central
enquanto em volta foram esculpidas na pedra cenas e personagens de Cristo, por
exemplo a Última Ceia, ao lado de outras que marcaram o destino dos polacos. No
centro, voltado para Kinga, uma enorme imagem de João Paulo II, feita por
vários escultores. O principal desta obra foi realizada nos séc. XVII e XIX,
todo o interior assemelha-se a um vasto navio construído em madeira. É
Património Mundial da UNESCO desde 1978. Ninguém que a estas paragens aporte, deve
deixar de conhecer uma obra ab-so-lu-ta-mente indispensável. Dentro desta
cidade geológica, encontramos uma vasta sala de cinema, um grande restaurante
para festas, realizações públicas e privadas, um restaurante, vários cafés,
lagos de água azulada, livraria.
(Nem todas as fotos são boas em parte devido ao fotógrafo e às condições de luz reinante na mina)
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Os primeiros mineiros |
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Goethe o incansável curioso |
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Os grandes corredores subterrâneos |
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A espessa mancha de sal que perdura |
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O lago onde com os odores que curam |
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A catedral dedicada a Kinga |
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João Paul II um santo meio de profanos |