terça-feira, janeiro 22, 2019

Terça, 22.
Almocei com o João no Adega da Mó. Antes na Brasileira um pouco de discussão política porque o homem respira essa arte nobre hoje transformada em arruaça canalha. A seguir ao repasto ao seu jeito, quero dizer, calmo, sem barulho, cozinha à moda antiga, simples e boa, um pouco ainda de história do lado das facções partidárias, de onde a “sopeira” emergiu muito maltratada grosso modo dando-lhe eu razão porque também não suporto semelhante criatura, fomos dar um passeio pelo Rossio. Um sol luminoso vinha lá do alto, descendo do Carmo pela encosta de casario branco encharcando a Praça de D. Pedro IV de uma luz vibrante. Quem nos observasse, diria tratar-se de dois cavalheiros de antanho, no passo tranquilo, travado de quando em vez de conversa mais atenta, na atenção aos passantes, às lojas, ao destino arquitectónico daquele maravilhoso espaço. Porque o hábito de passear pela cidade perdeu-se há muito tempo, a pressa tomando o transeunte de uma espécie de loucura que destrambelha os nervos e força à violência quotidiana. Felizmente que ontem, havia pouca gente: cafés, restaurantes, o comboio que me levou e trouxe, a Brasileira, o Corte Inglês onde mais tarde fui tomar um chá com a Alzira e comprar o jantar, por todo o lado os sítios ofereciam a imagem de um dia feriado.    

         - Em certo sentido ainda não deixei Cracóvia. No atropelo dos dias maravilhosos que lá passei, ficou uma nostalgia que não sobrevive à memória e instala em mim uma corrente de lugares e momentos repletos de felicidade. Foram tantos os sítios que admirei, as maravilhas que os meus olhos contemplaram, os caminhos que percorri, que dou-me conta ao reler as páginas deste diário que muito ficou na sombra como que protegido da descuidada e rápida espreitadela que regista o todo e não se detém no pormenor. Ora, sabendo nós que é no detalhe que está a raiz da essência de tudo, olho através da vegetação o dia em que visitei a mina de Wieliczka, um lugar mágico, surpreendente, por onde passaram Goethe e João Paul II que nasceu perto.

         - Esse dia acordou muito frio, imitando os anteriores, a neve cobria estradas, caminhos e vastas cercanias por onde o autocarro 304 serpenteou durante 45 minutos. Não seriam nove horas da manhã quando cheguei às instalações das antigas minas de sal que remontam há catorze milhões de anos quando a zona era mar, conhecidas e cobiçadas pelos tártaros que, diga-se de passagem, semearam o terror e incendiaram Cracóvia em 1241. Reinava então Casimir com o cognome de o Renovador. Como acima expliquei, estando num estado desgraçado de dores no pé que não tendo nascido coxinho, coitadinho, se tornou, comecei por solicitar uma cadeira de rodas, mais a mais porque sabia que se queria visitar integralmente o empreendimento - e desejava de facto -, não estava em condições de descer os 327 metros de profundidade da mina pelas escadas com 390 degraus. A princípio aceitei aquele meio de transporte, mas breve compreendi que me sentia mal e disse que iria descer como todos os visitantes de língua inglesa onde me incorporaram a mim e ao casal de putos portugueses. Sensível, uma dama à moda antiga, veio falar comigo, propondo-me fazer a visita com uma guia. Logo o grupo avançou por uma porta e eu fui conduzido a um átrio belíssimo onde aguardei uns minutos pela chegada de uma senhora de meia idade, professora na cidade e paga pelo Governo para aquele trabalho três vezes por semana. As galerias até a derradeira, se bem me lembro, são nove, e eu ia ouvindo as explicações da simpática guia, sentindo-me quase o presidente dos afectos, mas sem aqueles tiques que enchem de misericórdia o nosso Presidente. O deslumbre obrigava-me a parar para admirar, tocar, pedir explicações, numa peregrinação que durou duas horas e meia e me deixou exausto de dores. A cada andar, era pedido o minúsculo elevador que serviu aos mineiros que exploraram durante séculos a mina. Um código era pedido à minha paciente cicerone, o mínimo passo absolutamente controlado. Dentro extasiei-me não só pela obra humana, como também pela natureza que dentro dos 30 quilómetros de galerias, operou uma fantástica trama de rocha, sal, água, onde se respiram os componentes químicos e orgânicos que curam a tuberculose e as doenças respiratórias. À saída do ascensor, tínhamos que percorrer extensos corredores, num labirinto de beleza e admiração pelo conjunto. Embalados pela maravilha, não nos apercebemos sequer que fomos descendo e estamos sem darmos por isso no último piso onde foi construída uma catedral. Uma catedral soterrânea, perguntarão os meus leitores! Sim. Um vasto espaço com 12 metros de altura e 54 de largura, levantado entre 1895 e 1927. O mais surpreendente, é que esta catedral é erigida à rainha kinga (1224-1292) que ocupa o retábulo central enquanto em volta foram esculpidas na pedra cenas e personagens de Cristo, por exemplo a Última Ceia, ao lado de outras que marcaram o destino dos polacos. No centro, voltado para Kinga, uma enorme imagem de João Paulo II, feita por vários escultores. O principal desta obra foi realizada nos séc. XVII e XIX, todo o interior assemelha-se a um vasto navio construído em madeira. É Património Mundial da UNESCO desde 1978. Ninguém que a estas paragens aporte, deve deixar de conhecer uma obra ab-so-lu-ta-mente indispensável. Dentro desta cidade geológica, encontramos uma vasta sala de cinema, um grande restaurante para festas, realizações públicas e privadas, um restaurante, vários cafés, lagos de água azulada, livraria.

(Nem todas as fotos são boas em parte devido ao fotógrafo e às condições de luz reinante na mina)

Os primeiros mineiros 

Goethe o incansável curioso 

Os grandes corredores subterrâneos 

A espessa mancha de sal que perdura

O lago onde com os odores que curam

A catedral dedicada a Kinga 

João Paul II um santo meio de profanos