Domingo,
13.
Já
com uns quilómetros nas pernas e depois de uma noite pequena em casa dos Carmo
que generosamente me receberam antes de deixar Lisboa, o cansaço acumulado,
nada melhor que uma boa e grande noite de sono. Aconteceu ontem e duma rajada
dormi 10 horas seguidas. É certo que o hotel contribuiu, aquecido qb, apesar de
estar à entrada do centro histórico, silencioso, aquela noite foi absolutamente
reparadora. Adoro este hotel, o quarto é espaçoso, e dá para um pátio com um
metro de neve. Como estamos em época baixa e eu gosto de viajar nesta altura, a
unidade é grande mas poucos clientes a habitam. Ao pequeno-almoço profícuo,
encontro cinco, seis hóspedes.
- Às quatro da madrugada o terminal 2
do aeroporto de Lisboa era o centro vibrante de uma cidade que não dorme ou
dormindo a prestações, um olho da realidade outro na fantasia, repara ao
segundo as energias gastas para subir a bordo do avião que sai a cada minuto
pelas portas-fuga, abanos endiabrados que não param um segundo, levando de
enxurrada os viajantes de vidas low cost.
A companhia era a Ryanair, a mais barata do turismo de massas que eu, sem
outra opção, tive de embarcar se queria fazer directo Lisboa-Cracóvia. Eu disse
companhia quando na realidade devia dizer slot
machine, pois desde o site à hospedeira que nos atende à velocidade do som,
aquilo é uma formidável máquina de cobrar aos incautos da marmelada em que se
tornou o turismo para todos. Assistimos a cenas canalhas enquanto esperamos nas
mangas de saída, com clientes bloqueados da cabeça ante o que à última hora os
obrigam a pagar, cinco centímetros de mala, dois sacos de mão, comida a bordo
ao preço do Ritz sem direito a reclamação, perfumes, relógios, um “pequeno-almoço
especial” e até a tentação de enriquecermos com raspadinhas que nos podem dar
até um milhão de euros! O site da empresa que tive de palmilhar, estudado para
nos fazer viajar pelo mundo virtual, com tudo e o seu oposto, baralhando-nos de
modo a chegarmos ao aeroporto com a cabeça e a bagagem a soldo das mãozorras de
autênticos robôs que nos debitam informação muitas vezes contrária à que
encontrámos nas páginas do computador. Mil olhos são precisos para não cairmos
na ganância e logro das viagens baratas. Reconheço, todavia, que quem estiver
habituado a utilizar estas plataformas virtuais, pode fintá-las e conseguir um
preço cordato para a tal viagem de sonho à protecção das bananeiras numa ilha
perdida do fim do mundo. Eu gosto de desafios e sinto até prazer em mergulhar
nas redes de informação e a sua complexidade técnica é para mim uma lição que assimilo
com gosto. Contudo, no que isto se está a transformar, naquilo que observo do
lugar solitário da minha visão, é uma espécie de alienação colectiva que está a
tornar o homem num autómato da desinformação, da incultura, do conhecimento
mastigado e logo vomitado por indigesto. A memória enquanto testemunho de um
tempo e chegada a este, está a ser engolida, palmilhada pelas auto-estrada da
informação virtual, à velocidade das pontas dos dedos que tacteiam a história e
sobre ela não se detêm porque o presente é hoje um lugar que encerrou o passado
dentro das máquinas diabólicas que transportamos connosco para todo o lado. Paradoxalmente,
os aviões, são nos nossos dias o oposto para que foram concebidos. Embarcar
neles é dispor de imenso tempo gasto nos aeroportos, nas filas intermináveis
para o check-in, os controlos, os percursos pedestres de gare em gare, as filas
para um simples café, para embarcar sem falar no tempo de espera dentro dos
autocarros na pista, depois para descolar... Se somarmos todas as horas
derretidas nesta consumação, verificamos que elas são muitas vezes superiores
àquelas que precisámos para chegar ao nosso destino. Partimos noite cerrada,
chegamos dia aberto – a realidade fintou a magia.
- O dia aqui cai para o lado escuro (uma
hora adiantada em relação a Portugal), pelas quatro da tarde. O clima não permite
gozar a noite no exterior - a neve cai, o frio aumenta, os bares e cafés são o refúgio.
Para mim é óptimo porque depois de jantar, no aconchego do quarto, trabalho até
à meia-noite. Contudo, um dia destes, fui à parte antiga de Cracóvia ao
encontro do Cukiernia, Rua Jagiellonska, um bar muito anos sessenta, não só
pela decoração como pela atmosfera. Fundado em 1933, os velhos cracovianos ao
fim de tarde, têm o costume de lá ir comprar a pastelaria que a casa produz e discutir
diante de um café e fatia de makowiec.
A coisa é tão singular, que por lá fiquei esquecido, como se o tempo tivesse
parado ou conservado em naftalina que cada cliente traz de casa. Alguns velhos
entravam apenas para ir fazer um pipi urgente e saíam cheios de dignidade sem
consumirem um zlot.
- Esta manhã, quando cheguei à sala
dos pequenos-almoços, não vi vivalma. Contudo, a mesa onde costumo sentar-me
estava coberta de tudo não havendo um espaço para eu pôr os braços: um cesto
com diversas espécies de pão, um prato cheio de manteiga e pacotes de compotas,
pratos com ovos confeccionados de várias maneias, um jarro com sumo artificial
de laranja, queijos, iogurtes, maçãs, laranjas, cereais, duas espécies de
bolos, que digo eu! Dir-se-ia que o buffet inteiro se tinha transportado para
lá. Surpreendido, encontrando-me só, parado, estupefacto a olhar aquele manjar,
quando pelas costas chega a empregada. Entendemo-nos por gestos dado que a
rapariga só fala polaco e eu de polaco... petinga. Começa então a dança de
retorno em sentindo inverso, ficando apenas duas fatias de pão de cereais, um
pacotinho de manteiga, uma laranja, uma tranche do doce de limão, café e leite.
A empregada puxava do seu vocabulário todos os adjectivos e eu via nos seus
olhos espantados quanto o cliente do quarto 209 lhe parecia um ser estranho, talvez
um monge perdido numa bisarma de hotel vazio. Eu sei que se fosse francês,
naquela mesa não ficava nada. Ou antes o pouco que restasse, subiria ao quarto
para economizar o jantar no restaurante. Mas sendo português e ainda por cima
civilizado, frugal, desentendido com a sociedade de consumo, apenas me restava
abrir um sorriso condescendente e subir ao segundo andar deixando os meus
agradecimentos à zelosa empregada – foi o que fiz.
- Quando acordei, sendo domingo, e
estando a chover, fui tomar um café forte ao Nero situado no último andar do
centro comercial em frente do hotel. Depois, não tendo parado as dores na
perna-flor que tenho por hábito oferecer às raparigas gaiteiras, procurei uma
farmácia. Como tudo o que me davam para tratar estava em polaco, temendo as
consequências, desisti. Chegado ao quarto, encontrei na mala o
anti-inflamatório que o Tó me receitou há anos e lá devia estar perdido dado o
prazo mais que ultrapassado. Socorri-me dele e agora estou à espera dos seus
efeitos benéficos, mais a mais porque amanhã conto tomar o comboio para
Auschwitz e sei que lá vou ter que fazer longos percursos.