domingo, janeiro 13, 2019

Domingo, 13.
Já com uns quilómetros nas pernas e depois de uma noite pequena em casa dos Carmo que generosamente me receberam antes de deixar Lisboa, o cansaço acumulado, nada melhor que uma boa e grande noite de sono. Aconteceu ontem e duma rajada dormi 10 horas seguidas. É certo que o hotel contribuiu, aquecido qb, apesar de estar à entrada do centro histórico, silencioso, aquela noite foi absolutamente reparadora. Adoro este hotel, o quarto é espaçoso, e dá para um pátio com um metro de neve. Como estamos em época baixa e eu gosto de viajar nesta altura, a unidade é grande mas poucos clientes a habitam. Ao pequeno-almoço profícuo, encontro cinco, seis hóspedes.

          - Às quatro da madrugada o terminal 2 do aeroporto de Lisboa era o centro vibrante de uma cidade que não dorme ou dormindo a prestações, um olho da realidade outro na fantasia, repara ao segundo as energias gastas para subir a bordo do avião que sai a cada minuto pelas portas-fuga, abanos endiabrados que não param um segundo, levando de enxurrada os viajantes de vidas low cost. A companhia era a Ryanair, a mais barata do turismo de massas que eu, sem outra opção, tive de embarcar se queria fazer directo Lisboa-Cracóvia. Eu disse companhia quando na realidade devia dizer slot machine, pois desde o site à hospedeira que nos atende à velocidade do som, aquilo é uma formidável máquina de cobrar aos incautos da marmelada em que se tornou o turismo para todos. Assistimos a cenas canalhas enquanto esperamos nas mangas de saída, com clientes bloqueados da cabeça ante o que à última hora os obrigam a pagar, cinco centímetros de mala, dois sacos de mão, comida a bordo ao preço do Ritz sem direito a reclamação, perfumes, relógios, um “pequeno-almoço especial” e até a tentação de enriquecermos com raspadinhas que nos podem dar até um milhão de euros! O site da empresa que tive de palmilhar, estudado para nos fazer viajar pelo mundo virtual, com tudo e o seu oposto, baralhando-nos de modo a chegarmos ao aeroporto com a cabeça e a bagagem a soldo das mãozorras de autênticos robôs que nos debitam informação muitas vezes contrária à que encontrámos nas páginas do computador. Mil olhos são precisos para não cairmos na ganância e logro das viagens baratas. Reconheço, todavia, que quem estiver habituado a utilizar estas plataformas virtuais, pode fintá-las e conseguir um preço cordato para a tal viagem de sonho à protecção das bananeiras numa ilha perdida do fim do mundo. Eu gosto de desafios e sinto até prazer em mergulhar nas redes de informação e a sua complexidade técnica é para mim uma lição que assimilo com gosto. Contudo, no que isto se está a transformar, naquilo que observo do lugar solitário da minha visão, é uma espécie de alienação colectiva que está a tornar o homem num autómato da desinformação, da incultura, do conhecimento mastigado e logo vomitado por indigesto. A memória enquanto testemunho de um tempo e chegada a este, está a ser engolida, palmilhada pelas auto-estrada da informação virtual, à velocidade das pontas dos dedos que tacteiam a história e sobre ela não se detêm porque o presente é hoje um lugar que encerrou o passado dentro das máquinas diabólicas que transportamos connosco para todo o lado. Paradoxalmente, os aviões, são nos nossos dias o oposto para que foram concebidos. Embarcar neles é dispor de imenso tempo gasto nos aeroportos, nas filas intermináveis para o check-in, os controlos, os percursos pedestres de gare em gare, as filas para um simples café, para embarcar sem falar no tempo de espera dentro dos autocarros na pista, depois para descolar... Se somarmos todas as horas derretidas nesta consumação, verificamos que elas são muitas vezes superiores àquelas que precisámos para chegar ao nosso destino. Partimos noite cerrada, chegamos dia aberto – a realidade fintou a magia.

         - O dia aqui cai para o lado escuro (uma hora adiantada em relação a Portugal), pelas quatro da tarde. O clima não permite gozar a noite no exterior - a neve cai, o frio aumenta, os bares e cafés são o refúgio. Para mim é óptimo porque depois de jantar, no aconchego do quarto, trabalho até à meia-noite. Contudo, um dia destes, fui à parte antiga de Cracóvia ao encontro do Cukiernia, Rua Jagiellonska, um bar muito anos sessenta, não só pela decoração como pela atmosfera. Fundado em 1933, os velhos cracovianos ao fim de tarde, têm o costume de lá ir comprar a pastelaria que a casa produz e discutir diante de um café e fatia de makowiec. A coisa é tão singular, que por lá fiquei esquecido, como se o tempo tivesse parado ou conservado em naftalina que cada cliente traz de casa. Alguns velhos entravam apenas para ir fazer um pipi urgente e saíam cheios de dignidade sem consumirem um zlot.

         - Esta manhã, quando cheguei à sala dos pequenos-almoços, não vi vivalma. Contudo, a mesa onde costumo sentar-me estava coberta de tudo não havendo um espaço para eu pôr os braços: um cesto com diversas espécies de pão, um prato cheio de manteiga e pacotes de compotas, pratos com ovos confeccionados de várias maneias, um jarro com sumo artificial de laranja, queijos, iogurtes, maçãs, laranjas, cereais, duas espécies de bolos, que digo eu! Dir-se-ia que o buffet inteiro se tinha transportado para lá. Surpreendido, encontrando-me só, parado, estupefacto a olhar aquele manjar, quando pelas costas chega a empregada. Entendemo-nos por gestos dado que a rapariga só fala polaco e eu de polaco... petinga. Começa então a dança de retorno em sentindo inverso, ficando apenas duas fatias de pão de cereais, um pacotinho de manteiga, uma laranja, uma tranche do doce de limão, café e leite. A empregada puxava do seu vocabulário todos os adjectivos e eu via nos seus olhos espantados quanto o cliente do quarto 209 lhe parecia um ser estranho, talvez um monge perdido numa bisarma de hotel vazio. Eu sei que se fosse francês, naquela mesa não ficava nada. Ou antes o pouco que restasse, subiria ao quarto para economizar o jantar no restaurante. Mas sendo português e ainda por cima civilizado, frugal, desentendido com a sociedade de consumo, apenas me restava abrir um sorriso condescendente e subir ao segundo andar deixando os meus agradecimentos à zelosa empregada – foi o que fiz.  


         - Quando acordei, sendo domingo, e estando a chover, fui tomar um café forte ao Nero situado no último andar do centro comercial em frente do hotel. Depois, não tendo parado as dores na perna-flor que tenho por hábito oferecer às raparigas gaiteiras, procurei uma farmácia. Como tudo o que me davam para tratar estava em polaco, temendo as consequências, desisti. Chegado ao quarto, encontrei na mala o anti-inflamatório que o Tó me receitou há anos e lá devia estar perdido dado o prazo mais que ultrapassado. Socorri-me dele e agora estou à espera dos seus efeitos benéficos, mais a mais porque amanhã conto tomar o comboio para Auschwitz e sei que lá vou ter que fazer longos percursos.