Terça,
15.
Auschwitz.
Saí de Kraków manhã cedo no comboio das oito e pouco. Viagem agradável,
locomotiva aquecida, pouca gente ou apenas uns quantos operários que desceram
numa povoação onde só se viam fábricas. Nevava e nevou até Oswiecin. O elemento
neve é tão importante e condiciona assaz o quotidiano das pessoas, que em
algumas estações os funcionários dos comboios tinham de desimpedir a neve das plataformas
para que os passageiros não caíssem ao descer da locomotiva. Foi o caso da
estação de Krzeszowice onde fizemos uma longa paragem. O percurso durou hora e
meia. Chegados ao términos, vi-me diante de um lugar quase inóspito, neve a
rodos, pouca gente que não falava língua em que nos pudéssemos entender. Por
gestos e sorrisos (valha-nos isso, os polacos são simpáticos), consegui
compreender que dali saía um autocarro para o meu destino. Aguardei, bem
abrigado nos meus agasalhos, uns quinze minutos. Entrei no autobus e fomos por
ali fora, entre estradas ladeadas de neve e povoações recolhidas. A dado
momento, o condutor diz-me para sair e vá por ali acima que encontrarei o
museu. Só não me informou que “por ali acima” era mais de um quilómetro. Enfim,
fui andando fugindo dos pequenos lagos transformados em gelo. Chegado,
finalmente, às portas do museu, sou informado que não podia entrar porque até à
uma da tarde as visitas estavam reservadas a grupos de turistas. Barafustei em
todas as línguas, mas depressa compreendi que o sofrimento alheio, também ali,
tinha sido transformado numa formidável máquina de fazer dinheiro. Os
empregados do museu são às dezenas, os quiosques de comes e bebes proliferam, tendas
de souvenirs, livros, catálogos, peças artesanais, autocarros param a cada
minuto despejando centenas de turistas vindos dos quatro cantos do mundo, os
guias transpiram, as vozes alteram-se, as ordens desencontram-se, todo o mundo
quer vencer rapidamente os diversos controlos. Depressa, depressa há outras
coisas mais interessantes e menos penosas para ver. Fazer um pipi que o frio
tornou urgente, paga-se dois zlots, as carteiras abrem-se a cada segundo
despejando moedas e cartões bancários de todos os países. Senti-me diante
daquele negócio desembestado, uma pulga que ali aportou por engano. Toda aquela
estrutura aos meus olhos é indigna da memória daqueles que ali foram cremados,
torturados, mortos.
Então, para acalmar e passar o tempo,
fui almoçar ao restaurante que o museu também tem, pois então! Durante a frugal
refeição, enquanto olhava a neve tombar no descampado, ia lendo o Diário de
Jean Chalon (acabei por ler 80 páginas). Depois, fechado o livro, mergulhei
numa introspecção longa sobre não só a minha condição de viajante, mas sobretudo
a capacidade que o dinheiro tem em se multiplicar indiferente aos métodos,
varrendo na frente as alegrias e tristezas dos homens, arvorando-se em ente
superior, divino e omnipresente nas suas vidas. Os seres que escolheram não
embarcar neste colectivismo divinizador do seu poder, da sua obsessiva presença,
colhem os resultados de costas voltadas para a normalização que tudo aceita e,
por isso, incapaz de compreender os fenómenos político-sociais como os gilets jaunes. Há, todavia, uma verdade
que esta gente acelerada, montada nos seus haveres de uma vulgaridade
assustadora e por isso perigosa, desconhece: o homem de conhecimento, aquele
que pacientemente aprende, reflecte do fundo do seu isolamento, nunca está só,
não conhece mesmo esse drama que o vulgo teme – a solidão. Sendo livre,
apoiando-se na liberdade que o habita, é o único que possui moral para chamar
pelos seus verdadeiros nomes os assassinos, os corruptos, os ditadores e aquela
sorte de gente que sendo analfabeta, gere com dólares e euros o destino da
humanidade. Retenhamos para amanhã esta frase de Jorge Semprun que esteve
deportado no campo de concentração de Buchenwald a leste da Alemanha e foi
libertado, em 1945, pelas tropas de George Smith Patton: De semaine en semaine, j´avais vu se kever, s´épanouir sans leurs yeux
l´autore noire de la mort.
Chegada ao campo de morte de Auschwitz |
- Os melhores instantes desta viagem:
as horas de escrita. São elas que me trazem a felicidade, me transportam nas
asas bruxuleantes do infinito.
- Ontem, antes de embarcar, tendo
perdido o primeiro comboio, momentos intensos, diante de uma chávena de
café, gozando a lentidão do viajante sem tempo...
- E quando voltei, sôfrego por uma
sopa quente, o quarto confortável do hotel, a queda que fiz ao chegar, deslizando
o corpo no gelo que era muito e nevava. Consequência: o calcanhar de Aquiles do
pé que as mulheres adoram beijocar, ficou com um hematoma que me dificulta o
caminhar.
- Vencer este apetite pela maravilhosa e vasta doçaria polaca!
- Vencer este apetite pela maravilhosa e vasta doçaria polaca!