terça-feira, janeiro 15, 2019

Terça, 15.
Auschwitz. Saí de Kraków manhã cedo no comboio das oito e pouco. Viagem agradável, locomotiva aquecida, pouca gente ou apenas uns quantos operários que desceram numa povoação onde só se viam fábricas. Nevava e nevou até Oswiecin. O elemento neve é tão importante e condiciona assaz o quotidiano das pessoas, que em algumas estações os funcionários dos comboios tinham de desimpedir a neve das plataformas para que os passageiros não caíssem ao descer da locomotiva. Foi o caso da estação de Krzeszowice onde fizemos uma longa paragem. O percurso durou hora e meia. Chegados ao términos, vi-me diante de um lugar quase inóspito, neve a rodos, pouca gente que não falava língua em que nos pudéssemos entender. Por gestos e sorrisos (valha-nos isso, os polacos são simpáticos), consegui compreender que dali saía um autocarro para o meu destino. Aguardei, bem abrigado nos meus agasalhos, uns quinze minutos. Entrei no autobus e fomos por ali fora, entre estradas ladeadas de neve e povoações recolhidas. A dado momento, o condutor diz-me para sair e vá por ali acima que encontrarei o museu. Só não me informou que “por ali acima” era mais de um quilómetro. Enfim, fui andando fugindo dos pequenos lagos transformados em gelo. Chegado, finalmente, às portas do museu, sou informado que não podia entrar porque até à uma da tarde as visitas estavam reservadas a grupos de turistas. Barafustei em todas as línguas, mas depressa compreendi que o sofrimento alheio, também ali, tinha sido transformado numa formidável máquina de fazer dinheiro. Os empregados do museu são às dezenas, os quiosques de comes e bebes proliferam, tendas de souvenirs, livros, catálogos, peças artesanais, autocarros param a cada minuto despejando centenas de turistas vindos dos quatro cantos do mundo, os guias transpiram, as vozes alteram-se, as ordens desencontram-se, todo o mundo quer vencer rapidamente os diversos controlos. Depressa, depressa há outras coisas mais interessantes e menos penosas para ver. Fazer um pipi que o frio tornou urgente, paga-se dois zlots, as carteiras abrem-se a cada segundo despejando moedas e cartões bancários de todos os países. Senti-me diante daquele negócio desembestado, uma pulga que ali aportou por engano. Toda aquela estrutura aos meus olhos é indigna da memória daqueles que ali foram cremados, torturados, mortos.    

         Então, para acalmar e passar o tempo, fui almoçar ao restaurante que o museu também tem, pois então! Durante a frugal refeição, enquanto olhava a neve tombar no descampado, ia lendo o Diário de Jean Chalon (acabei por ler 80 páginas). Depois, fechado o livro, mergulhei numa introspecção longa sobre não só a minha condição de viajante, mas sobretudo a capacidade que o dinheiro tem em se multiplicar indiferente aos métodos, varrendo na frente as alegrias e tristezas dos homens, arvorando-se em ente superior, divino e omnipresente nas suas vidas. Os seres que escolheram não embarcar neste colectivismo divinizador do seu poder, da sua obsessiva presença, colhem os resultados de costas voltadas para a normalização que tudo aceita e, por isso, incapaz de compreender os fenómenos político-sociais como os gilets jaunes. Há, todavia, uma verdade que esta gente acelerada, montada nos seus haveres de uma vulgaridade assustadora e por isso perigosa, desconhece: o homem de conhecimento, aquele que pacientemente aprende, reflecte do fundo do seu isolamento, nunca está só, não conhece mesmo esse drama que o vulgo teme – a solidão. Sendo livre, apoiando-se na liberdade que o habita, é o único que possui moral para chamar pelos seus verdadeiros nomes os assassinos, os corruptos, os ditadores e aquela sorte de gente que sendo analfabeta, gere com dólares e euros o destino da humanidade. Retenhamos para amanhã esta frase de Jorge Semprun que esteve deportado no campo de concentração de Buchenwald a leste da Alemanha e foi libertado, em 1945, pelas tropas de George Smith Patton: De semaine en semaine, j´avais vu se kever, s´épanouir sans leurs yeux l´autore noire de la mort.

Chegada ao campo de morte de Auschwitz 

           - Os melhores instantes desta viagem: as horas de escrita. São elas que me trazem a felicidade, me transportam nas asas bruxuleantes do infinito.

         - Ontem, antes de embarcar, tendo perdido o primeiro comboio, momentos intensos, diante de uma chávena de café, gozando a lentidão do viajante sem tempo...
        
         - E quando voltei, sôfrego por uma sopa quente, o quarto confortável do hotel, a queda que fiz ao chegar, deslizando o corpo no gelo que era muito e nevava. Consequência: o calcanhar de Aquiles do pé que as mulheres adoram beijocar, ficou com um hematoma que me dificulta o caminhar.

          - Vencer este apetite pela maravilhosa e vasta doçaria polaca!