quarta-feira, janeiro 02, 2019

Quarta, 2.
É curioso. Dizem-nos - decerto com razão - que o clima está alterado, que as fúrias da natureza com seus desastres humanos e materiais, são cada vez mais frequentes, o equilíbrio das estações mais imprevisíveis e, não obstante tudo isso, eu acho que voltámos ao inverno de outros tempos, com um Dezembro frio e chuva qb, Janeiro a começar envolto nos dias arrefecidos, pouca geada, ensolarados e noites debaixo do edredão. Esta atmosfera que conservo na memória é dos primeiros tempos quando aqui cheguei vindo no fio das manhãs cobertas de todas as emoções, exultação, descoberta do espaço aberto, da calma das poucas casas caiadas de branco, esta em que vivo em ruína, o campo regado do orvalho das noites e o gigantesco silêncio vagueando, perdido, neste deserto de vinha e árvores de fruto, vigiado pelo castelo lá no alto e pelo silêncio -  companhia indispensável aos místicos, loucos, assassinos, artistas compulsivos ou alvoraçados de alma.

         - Este fim de ano, foi um pouco a repetição do Natal com a surpresa de saber quem teve a dedicação de me desejar votos para o Novo Ano. Como julgo já aqui ter dito, perdi na substituição do chip, todos os meus contactos e a lista só a vou refazendo à medida que me ligam. Devo, contudo, parecer um tontinho, perguntando na volta a quem não assina a mensagem, a identificação. Este quadro, tem-se prestado a situações deveras hilariantes que por si só são o encanto da desgraça Vodafone.

         - Esta noite um sonho irreal. Andei dias completamente nu a entrar e a sair de repartições públicas. Tinha frio, mas isso não me incomodava. O que me entristecia era que ninguém reparasse que estava como Deus ao mundo me pôs. Houve um dia que numa secção das Finanças, dancei para os funcionários que nem sequer se deram ao trabalho de levantar a cabeça do trabalho. Ora, como se sabe, esta não é a atitude habitual desses zelosos mangas-de-alpaca – até por isso este delírio foi surreal.


         - Não são só os políticos que nos tomam por obtusos – são também certos jornalistas de voz de veludo e palavra de pároco de aldeia que aparecem muito convencidos do seu saber na televisão. Vêm estas almas do outro mundo, perdão, do ano passado, explicar, decifrar o que quis dizer o Presidente da República com as palavras (portuguesas portanto) com que construiu a sua homilia de fim do ano. Para mim e para quase todos os portugueses com dois dedos de testa, a sua alocução é clara, concreta, disse o que Marcelo queria dizer e fê-lo num português correcto. Ponto final. Mas os nossos comentadores, utilizando as mesmas frases, mas com um sorriso de triunfo porque as compreenderam e descodificaram, vêm dizer-nos que façamos isto e aquilo, que somos tão responsáveis como (“eles”) os políticos pelo estado do país, que devemos votar, mas informados pela Internet que é o alçapão de todo o nosso conhecimento de cidadãos responsáveis. De nada valeu à apresentadora duvidar da informação virtual, o nosso iluminado padreco estava ali para transmitir o que a redacção lhe disse para transferir. Ainda se o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa foi num português de monossílabos e de futebolista como o do seu predecessor, ou uma missiva de um dos nossos cândidos advogados, ainda vá que não vá. Que os governantes o interpretem à sua maneira, segundo os seus jogos de poder, é o costume. Agora que venha a grande chusma de analistas botar discurso sobre discurso, só num país de parolos. Eles são os agoirentos mensageiros do futuro - o mundo virtual dirigirá o mundo real. Se assim for, que Deus me leve.