Quarta,
9.
Almocei
num restaurante de cozinha tradicional minhota nas escadinhas do Duque com o
João e o Simão. Comeu-se bem e melhor se conversou. No centro da conversa, logo
que a vozearia dos GNR alçou para o quartel ali perto, estive eu e o meu
suposto mistério ou antes quem se esconde atrás de quem sou lançado contido
(pelos vistos) em tudo o que escrevo. Não gosto de ser “atacado” daquela maneira,
embora entre amigos sinta apenas constrangimento. Verifiquei, todavia, que quem
melhor me conhece é o Simão ainda que nos conheçamos há pouco tempo
relativamente ao Corregedor que vem dos tempos do jornalismo. Isto para dizer
que o Simão acha-me demasiado sensível; enquanto o João um pouco duro,
espartano, indo ao ponto de desabafar que costuma pensar em mim com frequência,
como acontecera na véspera, estando ele em Lisboa e eu aqui, numa noite de gelo
e sombras, frio e nevoeiro cerrado. Eu explico-me. Ele pensa em mim deste modo:
“Ainda ontem imaginei como estaria eu numa noite gélida (ainda que a tua casa seja
aquecida) se estivesse no teu lugar.” Quer dizer: o centro das preocupações não
sou eu, mas ele... Aquela discussão que se estendeu até perto das três da tarde
e foi pelo seu conteúdo, embalo amigo e temática pouco comum entre nós, muito
interessante, ainda que eu não conseguisse perceber por que me acham os dois
misterioso e “escondido” atrás da escrita. Aventei se pensavam em sexualidade
(porque é nisso que toda a gente pensa, Freud ressuscitado), Simão disse sim,
mas... Corregedor não estava nem aí. Depois expus que a escrita é o exercício
antes de mais de arte, concisão e apuro de estilo. Se o escritor se despe como
faz, por exemplo, Matzneff, pode ser corajoso, mas desvenda, desobriga a arte,
desenvolve o mesmo apetite que a TVI segue e a populaça delira. Para isso,
basta um qualquer labrego exprimir-se. A mensagem é entendida através da glande
salivar que despacha a grosseria e projecta impudicícia. Ora acontece que eu,
se escritor sou, prefiro construir em torno de uma preocupação, obsessão,
certificação de um facto político ou social, de um drama ou alegria imensa que
não caiba nos nossos frágeis corações, uma catedral que aloje os sentimentos, memorize
as emoções e respire liberdade. Contudo, isto que me dizem os meus
queridíssimos amigos, vem de longe. Já o saudoso amigo Francisco Vicente,
quando eu lhe narrava o que os leitores diziam a propósito dos meus romances e
diários, ou seja, o lamento de não me encontrarem, nu, nas páginas que liam, o
meu caro Editor respondia, surpreendido: “Ainda mais! Você já se expõem tanto!”
Há ainda uma outra observação que está ligada à introspecção que cada um
pretende levar a cabo por sua conta e risco, quando me dizem: “Em que pensas? Às
vezes nem estás cá! Parece que andas não sei por onde e nem ouves o que te
dizemos.”