Quinta,
17.
Auschwitz.
Evidentemente falar do Holocausto perturba e põem em marcha toda a história política
da Segunda Grande Guerra aqui na Polónia como em França ou noutros países
dominados pelas botas cardadas dos nazis. E se a minha memória não me trai, só
neste país encantador onde me encontro, foram mortos pelo menos 3 milhões de
polacos judeus e, segundo os historiadores, uma boa parte denunciados pelos
seus compatriotas com a ganância de lhes ficar com os bens. A Polónia, é bom
que se diga, não aceitou a brutalidade de Hitler e do seu regime hediondo, foi
pura e simplesmente invadida por ele. Os historiadores concordam que não houve
campos de extermínio nazis, mas campos geridos por alemães durante a Polónia
ocupada. De resto, a Polónia é dos principais países que ajudaram judeus e o
museu Yad Vashem, em Jerusalém, salienta esse facto. Não deve ser por acaso que
na lista dos países que protegeram e até arriscaram a vida para ajudar judeus,
a Polónia ocupa o primeiro lugar. O número de polacos mortos é de 2,77 milhões
e 2,9 milhões de judeus polacos. No museu de Jerusalém, a Polónia ocupa o
primeiro lugar das nações que mais vidas de judeus salvou. O sinistro desta
maldita guerra, é que muitos milhares de cidadãos foram assassinados sem nunca
se terem cruzado com um soldado nazi. Assim como em França se conhecem os
traidores que expuseram ao crematório o vizinho, alguém com quem tinham contas
a ajustar, riqueza a usurpar, também a Polónia não escapou a essa miséria
moral. Tudo isto encheu a minha memória ao entrar e sair dos sinistros blocos
de onde ainda saem os gritos lancinantes de crianças, mulheres e homens. É de
quebrar o coração. O quadro é tão desumano, tão bárbaro, que me perguntei
várias vezes como foi possível. Diante daquele horror infinito, foi como se a
humanidade tivesse regredido ao tempo das cavernas, quando o homem se parecia
com o animal e a luta pela sobrevivência fosse entre duas feras.
Depois de ter feito uma pausa para
recuperar o ânimo, encostado à porta do Bloco 8, a neve não parava de tombar do
céu escuro, o frio medonho apertando-me o coração, lembrei-me do padre
Maximiliano e fui procurá-lo. Sabia que ele tinha sido deportado para aquele
inferno, mas não sabia se lá ficara alguma referência. Venho a encontrá-lo mais
acima, no Bloco 10, depois de me ter confrontado, julgo no Bloco 4, com o
estendal de cabelo, 1.950 kg., das mulheres mortas nas câmaras de gás. Tudo
impressiona, mas o último andar daquele Bloco (de resto uma tabuleta pede ao
visitante que não faça fotos, embora eu o pudesse ter feito porque estava só),
mergulhado na quase escuridão, fez–me tremer de comoção. Voltando ao padre
franciscano Maximiliano. Foi um herói que lutou contra a barbárie e sofreu as
consequências. A admiração que tenho por ele, advém, primeiro por pertencer à
Ordem de S. Francisco, depois porque ainda hoje os seus irmãos que vivem no
convento (desconheço aonde), são bombeiros e despem a estamenha do Povello logo que a sirene toca para
pagar o fogo, vestindo a farda dos homens da paz. Mais: a ele se deve a
primeira rádio que penso ainda hoje labora, assim como um jornal. O Papa Paulo
VI beatificou-o e João Paulo II canonizou-o santo. Já quase no final, com
poucas forças devido ao desgaste psicológico, ainda entrei no derradeiro Bloco
para ver a exposição do pintor David Olère, sobrevivente do Holocausto. Também
ali, numa espécie de catacumba, só para com os meus olhos e a minha escrita dar
testemunho o que pode a Arte, registei estas telas. No final, quando ia a sair,
o guarda de serviço veio agradecer-me. Por um triz não desatei num pranto.
Para não ferir algum leitor mais
sensível, não porei neste trabalho as fotos mais difíceis do interior das células.
Mas quero com a minha reflexão, testemunhar o que essencialmente me trouxe a
Cracóvia e sobretudo a Auschwitz-Birkenau onde estão os fornos crematórios.
- Belo dia frio, mas sem neve e
estradas e caminhos limpos do perigo da escorregadela. Ontem choveu julgo toda
a noite e a chuva derreteu a neve que estava em todo o lado, perigosa. De manhã
muito cedo fui Wieliczka Kopalnias (Salt Mine). Falarei disso depois. Porque do
que me quero ocupar hoje é do embate que o viajante solitário tem com as
estruturas construídas contra ele. Todavia, esta manhã tive uma agradável
surpresa, aliás duas: a primeira, foi ter ouvido pela única vez falar a língua
de Camões; a segunda, o facto de ela ser falada por um casal de jovens
lusitanos de 18 anos. Encontrei-os na fila para comprar bilhete de entrada na
mina e, tanto eles como eu, fomos integrados no grupo dos falantes de língua
inglesa, às 9 da manhã. Conversámos bastante antes de eles seguirem o grupo e
eu me ter recusado à cadeira rolante em marcha nupcial à frente. Adiante. Estes
jovenzinhos, fizeram aquilo que eu fiz: meteram-se no autocarro, andaram 12 km
em 40 minutos e chegaram ao destino pela módica quantia de 8 Zlots (ida e
volta) mais a entrada de 80 Zlots; os agentes de turismo cobrariam 150 Zlots. O
mesmo aconteceu quando visitei Auschwitz. Entrei só, mas paguei metade do preço
chupado por estes oportunistas do turismo de massas. São dois exemplos, mas
cada um faz como lhe aprouver. Eu é que não entro no jogo, maioritariamente
dirigido por empresas americanas. Os dois jovens viajam como eu. Não perguntei
se como amigos, irmãos ou namorados – isso não me diz respeito. Bastou saber
que compreenderam nas suas idades o jogo e não querem jogá-lo. Que um velho tonto, tomado dos medos da morte, temente aos caminhos, à língua, ao
imprevisto, às noites gélidas, aos gatunos, habituado às pantufas, às noites
romanceadas diante da televisão, às aflições do filhinho querido abusador do
álcool, do sexo em fila indiana (homo ou hetero, pouco importa), de drogas, às
noitadas fora de casa tema partir sem plano organizado, rejeitando o inopinado,
gostando do hotelzinho aquecido, se possível com carro à porta, papinha a horas
e conforto próprio para a sua idade compreende-se; agora a malta nova que eu
vejo desajustada, mais que protegida, feita uns mentecaptos à sombra de
organizações que os despacham de sítio em sítio em manada, com bebedeiras
estudadas e fados cantados às auroras do lucro conseguido à conta da incultura,
do saber mastigado, do tempo cronometrado, não compreendo.