quinta-feira, janeiro 17, 2019

Quinta, 17.
Auschwitz. Evidentemente falar do Holocausto perturba e põem em marcha toda a história política da Segunda Grande Guerra aqui na Polónia como em França ou noutros países dominados pelas botas cardadas dos nazis. E se a minha memória não me trai, só neste país encantador onde me encontro, foram mortos pelo menos 3 milhões de polacos judeus e, segundo os historiadores, uma boa parte denunciados pelos seus compatriotas com a ganância de lhes ficar com os bens. A Polónia, é bom que se diga, não aceitou a brutalidade de Hitler e do seu regime hediondo, foi pura e simplesmente invadida por ele. Os historiadores concordam que não houve campos de extermínio nazis, mas campos geridos por alemães durante a Polónia ocupada. De resto, a Polónia é dos principais países que ajudaram judeus e o museu Yad Vashem, em Jerusalém, salienta esse facto. Não deve ser por acaso que na lista dos países que protegeram e até arriscaram a vida para ajudar judeus, a Polónia ocupa o primeiro lugar. O número de polacos mortos é de 2,77 milhões e 2,9 milhões de judeus polacos. No museu de Jerusalém, a Polónia ocupa o primeiro lugar das nações que mais vidas de judeus salvou. O sinistro desta maldita guerra, é que muitos milhares de cidadãos foram assassinados sem nunca se terem cruzado com um soldado nazi. Assim como em França se conhecem os traidores que expuseram ao crematório o vizinho, alguém com quem tinham contas a ajustar, riqueza a usurpar, também a Polónia não escapou a essa miséria moral. Tudo isto encheu a minha memória ao entrar e sair dos sinistros blocos de onde ainda saem os gritos lancinantes de crianças, mulheres e homens. É de quebrar o coração. O quadro é tão desumano, tão bárbaro, que me perguntei várias vezes como foi possível. Diante daquele horror infinito, foi como se a humanidade tivesse regredido ao tempo das cavernas, quando o homem se parecia com o animal e a luta pela sobrevivência fosse entre duas feras.






         Depois de ter feito uma pausa para recuperar o ânimo, encostado à porta do Bloco 8, a neve não parava de tombar do céu escuro, o frio medonho apertando-me o coração, lembrei-me do padre Maximiliano e fui procurá-lo. Sabia que ele tinha sido deportado para aquele inferno, mas não sabia se lá ficara alguma referência. Venho a encontrá-lo mais acima, no Bloco 10, depois de me ter confrontado, julgo no Bloco 4, com o estendal de cabelo, 1.950 kg., das mulheres mortas nas câmaras de gás. Tudo impressiona, mas o último andar daquele Bloco (de resto uma tabuleta pede ao visitante que não faça fotos, embora eu o pudesse ter feito porque estava só), mergulhado na quase escuridão, fez–me tremer de comoção. Voltando ao padre franciscano Maximiliano. Foi um herói que lutou contra a barbárie e sofreu as consequências. A admiração que tenho por ele, advém, primeiro por pertencer à Ordem de S. Francisco, depois porque ainda hoje os seus irmãos que vivem no convento (desconheço aonde), são bombeiros e despem a estamenha do Povello logo que a sirene toca para pagar o fogo, vestindo a farda dos homens da paz. Mais: a ele se deve a primeira rádio que penso ainda hoje labora, assim como um jornal. O Papa Paulo VI beatificou-o e João Paulo II canonizou-o santo. Já quase no final, com poucas forças devido ao desgaste psicológico, ainda entrei no derradeiro Bloco para ver a exposição do pintor David Olère, sobrevivente do Holocausto. Também ali, numa espécie de catacumba, só para com os meus olhos e a minha escrita dar testemunho o que pode a Arte, registei estas telas. No final, quando ia a sair, o guarda de serviço veio agradecer-me. Por um triz não desatei num pranto.  





         Para não ferir algum leitor mais sensível, não porei neste trabalho as fotos mais difíceis do interior das células. Mas quero com a minha reflexão, testemunhar o que essencialmente me trouxe a Cracóvia e sobretudo a Auschwitz-Birkenau onde estão os fornos crematórios.


         - Belo dia frio, mas sem neve e estradas e caminhos limpos do perigo da escorregadela. Ontem choveu julgo toda a noite e a chuva derreteu a neve que estava em todo o lado, perigosa. De manhã muito cedo fui Wieliczka Kopalnias (Salt Mine). Falarei disso depois. Porque do que me quero ocupar hoje é do embate que o viajante solitário tem com as estruturas construídas contra ele. Todavia, esta manhã tive uma agradável surpresa, aliás duas: a primeira, foi ter ouvido pela única vez falar a língua de Camões; a segunda, o facto de ela ser falada por um casal de jovens lusitanos de 18 anos. Encontrei-os na fila para comprar bilhete de entrada na mina e, tanto eles como eu, fomos integrados no grupo dos falantes de língua inglesa, às 9 da manhã. Conversámos bastante antes de eles seguirem o grupo e eu me ter recusado à cadeira rolante em marcha nupcial à frente. Adiante. Estes jovenzinhos, fizeram aquilo que eu fiz: meteram-se no autocarro, andaram 12 km em 40 minutos e chegaram ao destino pela módica quantia de 8 Zlots (ida e volta) mais a entrada de 80 Zlots; os agentes de turismo cobrariam 150 Zlots. O mesmo aconteceu quando visitei Auschwitz. Entrei só, mas paguei metade do preço chupado por estes oportunistas do turismo de massas. São dois exemplos, mas cada um faz como lhe aprouver. Eu é que não entro no jogo, maioritariamente dirigido por empresas americanas. Os dois jovens viajam como eu. Não perguntei se como amigos, irmãos ou namorados – isso não me diz respeito. Bastou saber que compreenderam nas suas idades o jogo e não querem jogá-lo. Que um velho tonto, tomado dos medos da morte, temente aos caminhos, à língua, ao imprevisto, às noites gélidas, aos gatunos, habituado às pantufas, às noites romanceadas diante da televisão, às aflições do filhinho querido abusador do álcool, do sexo em fila indiana (homo ou hetero, pouco importa), de drogas, às noitadas fora de casa tema partir sem plano organizado, rejeitando o inopinado, gostando do hotelzinho aquecido, se possível com carro à porta, papinha a horas e conforto próprio para a sua idade compreende-se; agora a malta nova que eu vejo desajustada, mais que protegida, feita uns mentecaptos à sombra de organizações que os despacham de sítio em sítio em manada, com bebedeiras estudadas e fados cantados às auroras do lucro conseguido à conta da incultura, do saber mastigado, do tempo cronometrado, não compreendo.