domingo, janeiro 20, 2019

Domingo, 20.
Cheguei num estado miserável. O hematoma do pé que as senhoras fora do casamento adoram curvar-se em prostrações e orações, tinha progredido para todo o calcanhar de Aquiles e fizera-se uma enorme bolha esponjosa de sangue que me provocava dores intensas. Ainda pensei ir ao hospital, mas se bem pensei logo desisti. Primeiro, o tempo de espera seria muito, depois durante esse calvário ainda sairia com um qualquer vírus. Acresce que fui recebido por uma chuvada o que contribuiu para ser eu a tomar conta do meu destino. Foi o que fiz. Carreguei o pequeno trólei do aeroporto para o metro e deste para o autocarro que me largou em Pinhal Novo onde havia deixado o carro. Em casa meti mãos à obra e piquei a bola de ténis com uma agulha, espremi o sangue e desinfectei com tintura iodo. Esse simples e um pouco doloroso acto, foi o que me levou directo a nove horas de sono sem interrupção. Caminho ainda com dores, mas nada que se compare com o tormento, por exemplo, das duas horas e meia de visita à mina de Wieliczka ou das visitas posteriores a outros locais e os passeios inevitáveis entre o hotel e o centro krakowska para comer.

         - Chegado foi como se tivesse saído uma hora antes. As mesmas histórias, aquele rom-rom desportivo onde treinadores e jogadores são mais importantes que a vida dos cidadãos, a política, os tormentos do mundo, a fome e miséria moral e física dos habitantes deste recanto cujo oxigénio é uma mistura de futebol e corrupção dura.

         - De contrário – embora saibamos que o mundo anda às avessas – tomemos o caso daquele rapaz que vive em Budapeste e a nossa Justiça tão célere a querer condená-lo somente porque ele, servindo-se da sua imensa inteligência, a pôs ao servido do bem comum denunciando e-mails onde se lê a história secreta do mundo do futebol neste nosso querido e tão maltratado país, em vez de se despachar a condenar os muitos políticos e gestores públicos e privados, banqueiros e autarcas, que abarrotam de crimes de toda a ordem os tribunais. A Justiça e o Governo, se fossem verdadeiramente cristalinos e interessados em mudar o rumo da ronceirice governamental, a amálgama entre o Estado e interesses privados, aconselhariam o presidente dos afectos, a fazê-lo comendador – há mais mérito no seu “crime” que na ganância do comendador Cristiano Ronaldo que vai ter que pagar milhões para não ir parar com os costados à cadeia ou na fala de sargeta do comerciante de pneus que o nosso génio revelou.

         - Esta passagem, pág. 120, do livro de Jean Chalon, Journal d´un ours: Le monde ne tourne plus autour du soleil, il tourne autour d´un ballon. Le football est devenu la nouvelle religion avec ses idoles que l´on adore, et ses stades que l´on remplit pendant que les églises se vident...

         - Somando o regresso desde a porta do hotel Warszawski a Lisboa, foram oito horas perdidas em viagem. Oito horas! Os nossos navegantes, nos séculos XV e XVI, metiam 24, 26 meses nos percursos à Índia. Não tarda, apesar dos avanços técnicos, uma viagem de avião levará tanto como os nossos corajosos antepassados. Isto para dizer que não há pachorra para viajar de avião. Por tudo e particularmente pelo turismo de massas e os voos easy que de easy não têm nada. Os passageiros viajam como carga, literalmente. Os sites destas companhias são estudados para sacar aqui e acolá, com o mínimo de pessoal, dando oportunidade (é o termo) ao passageiro de se perder nos aeroportos onde não encontra um funcionário, um escritório, um guichet de informações. Contudo, pensando melhor, passageiros e companhia entendem-se, vão bem ensemble, não têm exigências, são explorados e calam-se, pagam e não refilam, vão para onde os mandam e não discutem, impõem-lhes regras idiotas e eles aceitam... Isto por uma e única razão: o voo é barato. Lembro-me na ida de ter refilado com o funcionário que me fez pagar mais 20 euros pela mala. Ele argumentou que no site da Rayanair está o que ele me impunha. Respondi: “está, mas está também o seu contrário”. Ele riu-se, eu entendi o sorriso e respondi: “Não sei como há gente que viaje nestas condições! – Não sabe?! É mais barata – acrescentou com um sorriso azedo.”

         - Eu comecei a viajar para fora de Portugal muito cedo. Num tempo em que não se via um patrício em lado nenhum e quando se avistava cumprimentávamo-nos como avis raras. Ainda sou do tempo (como dizem os velhos a propósito de tudo e nada) que visitar um país distante era uma aventura encantadora, quase uma cerimónia pelo prazer de tomar o avião, os aeroportos vazios, as atenções como então se chamavam das hospedeiras, o serviço a bordo com menu requintado onde entrava champanhe, vinhos à descrição, tudo sem pagar um chavo a mais, os passageiros civilizados, distintos, de fato e gravata, um murmúrio circunstancial a percorrer o interior da aeronave, cuidadosamente vigiado pelos desejos de cada passageiro prontamente satisfeitos.
        
         Ontem vim numa grande algazarra, desmazelo, gritos, balbúrdia, maus odores, vulgaridade, empurrões, novo-riquismo pobre, um atropelo das regras civilizacionais, o serviço tu-cá-tu-lá com o passageiro, aquele pobre contentinho que foi ali e logo voltou por uns tristes euros para contar ao vizinho o que viu, igual ao que vê todos os dias, a universalidade democrática transformada numa fraude de importância e igualdade e oportunidade para todos. Para não falar no desarranjo e custos que este turismo barato causa em aumento de empregados, estruturas, movimento nos aeroportos, horas de espera, cansaço, tempo de horrores e compaixões expostas.

         No início, lembro-me, com a Easyjet cheguei a viajar duas ou três vezes e gostei da novidade. Era um tempo antes dos “preços imbatíveis” da Raynair e encontrava uma certa aristocracia falida e de grande dignidade e interesse humanos. Cheguei mesmo a dizer que era naquele tipo de proposta de viagem que eu embarcaria. Mas, pouco tempo depois, as coisas começaram a mudar e era a companhia de aviação que nos impunha as suas condições e nós não tínhamos o direito de reclamar e nem havia onde o fazer. Por outro lado, as principais empresas de aviação europeias, para não perderem o fluxo súbito de viajantes a granel, desceram os preços e eu há anos que me ajustei a esse marketing e passei a viajar em “classe económica”, mas bem melhor que as companhias easy de baixo custo. Pago um pouco mais, mas viajo doutro modo. O Jean- Paul que teve um alto cargo na Air France, aconselhava-me a não viajar nestas companhias. “São um perigo”, dizia.


         - A receita para travar a psicose dos gilets jaunes de descer às ruas ao fim-de-semana, foi passada por um falso médico e não resultou. Por isso, ontem, entre 70 e 80 mil mais uma vez estiveram na rua. Exigem a demissão de Chou Chou o pobre coitado que se convenceu que se governa uma nação como a França (como Portugal onde tudo é manso, talvez) com o físico e juventude (no seu caso entre comas).