Domingo,
20.
Cheguei
num estado miserável. O hematoma do pé que as senhoras fora do casamento adoram
curvar-se em prostrações e orações, tinha progredido para todo o calcanhar de
Aquiles e fizera-se uma enorme bolha esponjosa de sangue que me provocava dores
intensas. Ainda pensei ir ao hospital, mas se bem pensei logo desisti.
Primeiro, o tempo de espera seria muito, depois durante esse calvário ainda
sairia com um qualquer vírus. Acresce que fui recebido por uma chuvada o que
contribuiu para ser eu a tomar conta do meu destino. Foi o que fiz. Carreguei o
pequeno trólei do aeroporto para o metro e deste para o autocarro que me largou
em Pinhal Novo onde havia deixado o carro. Em casa meti mãos à obra e piquei a
bola de ténis com uma agulha, espremi o sangue e desinfectei com tintura iodo.
Esse simples e um pouco doloroso acto, foi o que me levou directo a nove horas
de sono sem interrupção. Caminho ainda com dores, mas nada que se compare com o
tormento, por exemplo, das duas horas e meia de visita à mina de Wieliczka ou
das visitas posteriores a outros locais e os passeios inevitáveis entre o hotel
e o centro krakowska para comer.
- Chegado foi como se tivesse saído
uma hora antes. As mesmas histórias, aquele rom-rom desportivo onde treinadores
e jogadores são mais importantes que a vida dos cidadãos, a política, os
tormentos do mundo, a fome e miséria moral e física dos habitantes deste
recanto cujo oxigénio é uma mistura de futebol e corrupção dura.
- De contrário – embora saibamos que o
mundo anda às avessas – tomemos o caso daquele rapaz que vive em Budapeste e a
nossa Justiça tão célere a querer condená-lo somente porque ele, servindo-se da
sua imensa inteligência, a pôs ao servido do bem comum denunciando e-mails onde
se lê a história secreta do mundo do futebol neste nosso querido e tão
maltratado país, em vez de se despachar a condenar os muitos políticos e
gestores públicos e privados, banqueiros e autarcas, que abarrotam de crimes de
toda a ordem os tribunais. A Justiça e o Governo, se fossem verdadeiramente
cristalinos e interessados em mudar o rumo da ronceirice governamental, a amálgama
entre o Estado e interesses privados, aconselhariam o presidente dos afectos, a
fazê-lo comendador – há mais mérito no seu “crime” que na ganância do
comendador Cristiano Ronaldo que vai ter que pagar milhões para não ir parar
com os costados à cadeia ou na fala de sargeta do comerciante de pneus que o
nosso génio revelou.
- Esta passagem, pág. 120, do livro de
Jean Chalon, Journal d´un ours: Le monde
ne tourne plus autour du soleil, il tourne autour d´un ballon. Le football est
devenu la nouvelle religion avec ses idoles que l´on adore, et ses stades que
l´on remplit pendant que les églises se vident...
- Somando o regresso desde a porta do
hotel Warszawski a Lisboa, foram oito horas perdidas em viagem. Oito horas! Os
nossos navegantes, nos séculos XV e XVI, metiam 24, 26 meses nos percursos à Índia.
Não tarda, apesar dos avanços técnicos, uma viagem de avião levará tanto como
os nossos corajosos antepassados. Isto para dizer que não há pachorra para
viajar de avião. Por tudo e particularmente pelo turismo de massas e os voos easy que de easy não têm nada. Os
passageiros viajam como carga, literalmente. Os sites destas companhias são
estudados para sacar aqui e acolá, com o mínimo de pessoal, dando oportunidade
(é o termo) ao passageiro de se perder nos aeroportos onde não encontra um
funcionário, um escritório, um guichet de informações. Contudo, pensando
melhor, passageiros e companhia entendem-se, vão bem ensemble, não têm exigências,
são explorados e calam-se, pagam e não refilam, vão para onde os mandam e não discutem,
impõem-lhes regras idiotas e eles aceitam... Isto por uma e única razão: o voo
é barato. Lembro-me na ida de ter refilado com o funcionário que me fez pagar
mais 20 euros pela mala. Ele argumentou que no site da Rayanair está o que ele
me impunha. Respondi: “está, mas está também o seu contrário”. Ele riu-se, eu
entendi o sorriso e respondi: “Não sei como há gente que viaje nestas condições!
– Não sabe?! É mais barata – acrescentou com um sorriso azedo.”
- Eu comecei a viajar para fora de
Portugal muito cedo. Num tempo em que não se via um patrício em lado nenhum e
quando se avistava cumprimentávamo-nos como avis
raras. Ainda sou do tempo (como dizem os velhos a propósito de tudo e nada)
que visitar um país distante era uma aventura encantadora, quase uma cerimónia
pelo prazer de tomar o avião, os aeroportos vazios, as atenções como então se
chamavam das hospedeiras, o serviço a bordo com menu requintado onde entrava
champanhe, vinhos à descrição, tudo sem pagar um chavo a mais, os passageiros
civilizados, distintos, de fato e gravata, um murmúrio circunstancial a percorrer
o interior da aeronave, cuidadosamente vigiado pelos desejos de cada passageiro
prontamente satisfeitos.
Ontem vim numa grande algazarra,
desmazelo, gritos, balbúrdia, maus odores, vulgaridade, empurrões, novo-riquismo
pobre, um atropelo das regras civilizacionais, o serviço tu-cá-tu-lá com o
passageiro, aquele pobre contentinho que foi ali e logo voltou por uns tristes
euros para contar ao vizinho o que viu, igual ao que vê todos os dias, a
universalidade democrática transformada numa fraude de importância e igualdade
e oportunidade para todos. Para não falar no desarranjo e custos que este
turismo barato causa em aumento de empregados, estruturas, movimento nos
aeroportos, horas de espera, cansaço, tempo de horrores e compaixões expostas.
No início, lembro-me, com a Easyjet
cheguei a viajar duas ou três vezes e gostei da novidade. Era um tempo antes
dos “preços imbatíveis” da Raynair e encontrava uma certa aristocracia falida e
de grande dignidade e interesse humanos. Cheguei mesmo a dizer que era naquele
tipo de proposta de viagem que eu embarcaria. Mas, pouco tempo depois, as
coisas começaram a mudar e era a companhia de aviação que nos impunha as suas
condições e nós não tínhamos o direito de reclamar e nem havia onde o fazer. Por
outro lado, as principais empresas de aviação europeias, para não perderem o
fluxo súbito de viajantes a granel, desceram os preços e eu há anos que me
ajustei a esse marketing e passei a viajar em “classe económica”, mas bem
melhor que as companhias easy de
baixo custo. Pago um pouco mais, mas viajo doutro modo. O Jean- Paul que teve um
alto cargo na Air France, aconselhava-me a não viajar nestas companhias. “São
um perigo”, dizia.
- A receita para travar a psicose dos gilets jaunes de descer às ruas ao
fim-de-semana, foi passada por um falso médico e não resultou. Por isso, ontem,
entre 70 e 80 mil mais uma vez estiveram na rua. Exigem a demissão de Chou Chou
o pobre coitado que se convenceu que se governa uma nação como a França (como
Portugal onde tudo é manso, talvez) com o físico e juventude (no seu caso entre
comas).