Quarta, 23.
Os
nossos coletes negros, há três dias que incomodam os governantes e assanham a
Polícia, ao mesmo tempo que dão alegria aos noticiários e, sobretudo, às
carradas de comentadores que palram sobre moral e bons costumes. O coro das
prédicas padrecas é idêntico em todos os canais de televisão, só as
carantonhas, medonhas, mudam. O homem dos afectos, apressa-se a dizer que não
devemos generalizar os tumultos que aconteceram mas, como sempre, diz estar
atento. Que fizeram aqueles que são os únicos juntamente com os reformados que
têm o direito de revoltar-se? Desceram à rua e disseram estar fartos de serem
marginalizados, de viver em guetos, de não terem saúde e pão para comer, de
serem maltratados pela Polícia, ignorados dos políticos, humilhados, serem
negros e por isso sofrerem de atitudes racistas e xenófobas que os nossos
dirigentes dizem não existir em Portugal. É certo que pelo caminho incendiaram
carros privados, caixotes do lixo e assim. Não deviam. Contudo, se pusermos na
balança do que deve e do que é, compreendemos que o que eles sofrem no
dia-a-dia é incomensuravelmente mais danoso do que aquilo que partiu com o
fogo. Eu estou do seu lado e digo que eles deviam primeiro que os professores,
os enfermeiros, os juízes, e toda essa elite de funcionalismo que as centrais
sindicais apoiam, ser escutados e integrados na sociedade na sociedade
democrática e republicana.
- Eu há anos fui convidado para uma
festa naquele bairro africano junto a Loures, as casas inacabadas, os degraus
em cimento tosco, as divisões formadas por cobertores e cortinas que separavam
as vidas daqueles (muitos) que lá viviam em condições arrepiantes para mim, mas
boas para eles recém chegados de Angola e doutros destinos coloniais. Andei por
lá perdido, em busca do prédio descarnado onde a festa de anos tinha lugar.
Subi e desci escadas, confrontei-me com dezenas de negros que me pareceram mais
escuros por não haver electricidade em lado nenhum e, francamente, nunca senti
medo. Pelo contrário, o que vi e senti foi afecto, simpatia, por vezes
extravagante, calor humano nas suas formas mais diversas. Enquanto o vinho
corria e as febras se assavam dentro dos cubículos onde gente dormia, os rádios
a pilhas em altos berros, gente que não parava de chegar e outra que não
permanecia, negros e negras confraternizavam de olhos nos olhos, os corações
abertos ao encontro da luz que irradiava daqueles olhos grandes sobre um fundo
branco que sorria. De regresso a casa, para mim branco instalado noutra forma
de vida, não deixei de me envergonhar por ver aquelas almas abandonadas à sua
sorte, sofrendo os frios dos invernos e os calores tórridos dos verões, sem luz
eléctrica, portas e janelas, deitados sobre enxergas como se aqueles prédios
desventrados fossem os confortáveis andares onde a alguns quilómetros os
autarcas e outros governantes dormiam o sono profundo dos justos... Com uma
certeza saí eu daquele aglomerado de pobreza: ali havia mais felicidade, mais
camaradagem, mais união que em todas as casas e apartamentos da cidade cínica
que dorme sobre a esteira do sofrimento dos africanos que escolheram o nosso
país para viver e morrer. Se há raça digna e nobre à face da terra, é a
africana.
- Eu espero que o senhor dos anéis,
perdão, o senhor dos afectos, retire as duas condecorações ao “maior jogador do
mundo” que aldrabou a justiça espanhola e envergonhou Portugal com vários
crimes de fraude fiscal, ganância e arrogância, quando confrontado com os delitos.
O sujeito vai ter que pagar para não passar dois anos na prisão, 5,5 milhões de
euros ao fisco. Eu sou contra, porque um tipo, qualquer que ele seja, que defrauda
o erário público num tal valor, devia pagar, sim, mas em simultâneo cumprir a
pena a que fora condenado. Deste modo, os ricos safam-se sempre; os pobres
pagam por eles. Se isto é justiça eu vou ali e já venho.
- Em Cracóvia, ao fim da tarde, nos
dias intensos de trabalho, para aliviar a cabeça, instalado na rotina dos dias
felizes, saía do hotel e ia debaixo de neve até à Praça Rynek Glówny. Ia com
mil cuidados, utilizado o carreiro que a foule
rasgava no chão até à muralha onde a virgem padroeira da cidade tem um
pequeno retábulo iluminado dia e noite. Passada a porta ogival, entrava por
assim dizer no mundo da Idade Média, inteiramente preservado não obstante
invasões e incêndios, guerras e assaltos bárbaros. Seguia depois pela grande
rua ao fundo da qual se ergue a catedral e a maior praça da Europa, ainda
iluminada com as decorações de Natal, para ir tomar um chá com aqueles doces
que me deixavam tonto de gourmandise,
ao Kawiarnia Noworolski. O café abarrotava sempre de gente, estudantes
acalorados, gentes das mais variadas origens. Eu sentia-me ali bem, no meio
daquele mundo barulhento, ausente e presente, respirando a atmosfera invulgar
que me dava a sensação de estar em Jerusalém devido à música e à calorosa
fraternidade. Na rua nevava e os flocos de neve caindo mais fortes, retardavam
a minha partida – as horas e o tempo que as habita, eram notas de um mundo
parado no lugar supremo do encantamento...
Mãe com o Menino, padroeira de Cracóvia, obra de PIASEK |