quarta-feira, janeiro 23, 2019

Quarta, 23.
Os nossos coletes negros, há três dias que incomodam os governantes e assanham a Polícia, ao mesmo tempo que dão alegria aos noticiários e, sobretudo, às carradas de comentadores que palram sobre moral e bons costumes. O coro das prédicas padrecas é idêntico em todos os canais de televisão, só as carantonhas, medonhas, mudam. O homem dos afectos, apressa-se a dizer que não devemos generalizar os tumultos que aconteceram mas, como sempre, diz estar atento. Que fizeram aqueles que são os únicos juntamente com os reformados que têm o direito de revoltar-se? Desceram à rua e disseram estar fartos de serem marginalizados, de viver em guetos, de não terem saúde e pão para comer, de serem maltratados pela Polícia, ignorados dos políticos, humilhados, serem negros e por isso sofrerem de atitudes racistas e xenófobas que os nossos dirigentes dizem não existir em Portugal. É certo que pelo caminho incendiaram carros privados, caixotes do lixo e assim. Não deviam. Contudo, se pusermos na balança do que deve e do que é, compreendemos que o que eles sofrem no dia-a-dia é incomensuravelmente mais danoso do que aquilo que partiu com o fogo. Eu estou do seu lado e digo que eles deviam primeiro que os professores, os enfermeiros, os juízes, e toda essa elite de funcionalismo que as centrais sindicais apoiam, ser escutados e integrados na sociedade na sociedade democrática e republicana.

         - Eu há anos fui convidado para uma festa naquele bairro africano junto a Loures, as casas inacabadas, os degraus em cimento tosco, as divisões formadas por cobertores e cortinas que separavam as vidas daqueles (muitos) que lá viviam em condições arrepiantes para mim, mas boas para eles recém chegados de Angola e doutros destinos coloniais. Andei por lá perdido, em busca do prédio descarnado onde a festa de anos tinha lugar. Subi e desci escadas, confrontei-me com dezenas de negros que me pareceram mais escuros por não haver electricidade em lado nenhum e, francamente, nunca senti medo. Pelo contrário, o que vi e senti foi afecto, simpatia, por vezes extravagante, calor humano nas suas formas mais diversas. Enquanto o vinho corria e as febras se assavam dentro dos cubículos onde gente dormia, os rádios a pilhas em altos berros, gente que não parava de chegar e outra que não permanecia, negros e negras confraternizavam de olhos nos olhos, os corações abertos ao encontro da luz que irradiava daqueles olhos grandes sobre um fundo branco que sorria. De regresso a casa, para mim branco instalado noutra forma de vida, não deixei de me envergonhar por ver aquelas almas abandonadas à sua sorte, sofrendo os frios dos invernos e os calores tórridos dos verões, sem luz eléctrica, portas e janelas, deitados sobre enxergas como se aqueles prédios desventrados fossem os confortáveis andares onde a alguns quilómetros os autarcas e outros governantes dormiam o sono profundo dos justos... Com uma certeza saí eu daquele aglomerado de pobreza: ali havia mais felicidade, mais camaradagem, mais união que em todas as casas e apartamentos da cidade cínica que dorme sobre a esteira do sofrimento dos africanos que escolheram o nosso país para viver e morrer. Se há raça digna e nobre à face da terra, é a africana.

         - Eu espero que o senhor dos anéis, perdão, o senhor dos afectos, retire as duas condecorações ao “maior jogador do mundo” que aldrabou a justiça espanhola e envergonhou Portugal com vários crimes de fraude fiscal, ganância e arrogância, quando confrontado com os delitos. O sujeito vai ter que pagar para não passar dois anos na prisão, 5,5 milhões de euros ao fisco. Eu sou contra, porque um tipo, qualquer que ele seja, que defrauda o erário público num tal valor, devia pagar, sim, mas em simultâneo cumprir a pena a que fora condenado. Deste modo, os ricos safam-se sempre; os pobres pagam por eles. Se isto é justiça eu vou ali e já venho. 


         - Em Cracóvia, ao fim da tarde, nos dias intensos de trabalho, para aliviar a cabeça, instalado na rotina dos dias felizes, saía do hotel e ia debaixo de neve até à Praça Rynek Glówny. Ia com mil cuidados, utilizado o carreiro que a foule rasgava no chão até à muralha onde a virgem padroeira da cidade tem um pequeno retábulo iluminado dia e noite. Passada a porta ogival, entrava por assim dizer no mundo da Idade Média, inteiramente preservado não obstante invasões e incêndios, guerras e assaltos bárbaros. Seguia depois pela grande rua ao fundo da qual se ergue a catedral e a maior praça da Europa, ainda iluminada com as decorações de Natal, para ir tomar um chá com aqueles doces que me deixavam tonto de gourmandise, ao Kawiarnia Noworolski. O café abarrotava sempre de gente, estudantes acalorados, gentes das mais variadas origens. Eu sentia-me ali bem, no meio daquele mundo barulhento, ausente e presente, respirando a atmosfera invulgar que me dava a sensação de estar em Jerusalém devido à música e à calorosa fraternidade. Na rua nevava e os flocos de neve caindo mais fortes, retardavam a minha partida – as horas e o tempo que as habita, eram notas de um mundo parado no lugar supremo do encantamento...  
Mãe com o Menino, padroeira de Cracóvia, obra de PIASEK