Quinta, 14.
A
vida no seu panorama ou degradê de cores, tem sempre tanto que nos prende que a
dificuldade é muitas vezes a escolha do realce. Que o diga este Diário. É,
todavia, nos pequenos nadas que ela se reconstitui como sagrada e nos deixa
boquiabertos ante a formidável beleza e dinâmica que dela emana. Basta falarmos
do vento ou do silêncio ou da espessura das horas para recentrarmos o objectivo
divino que subjaz no tique-taque infindável do tempo. Por exemplo, hoje estive
enfeitiçado com a magia do rapaz que andou aí o dia todo a cortar os arbustos. Esteve
hoje e estará nos próximos dias, pois a tarefa é colossal. Ele tem método, é
hábil, preserva com a madeira um diálogo de respeito e arte, manobra as
máquinas como se brincasse com elas. Quando me olha, fá-lo com os olhos
grandes de quem não perdeu a adolescência e nela persiste em quedar-se para
suportar a rudeza que os seus trinta anos o obrigam a aceitar. Fico tempos
infinitos a vê-lo empilhar os braços das árvores que servirão para as lareiras.
O charco de lenha que vai fazendo por aqui e por acolá penetra em mim, fica em
mim suspenso de todas as recordações felizes que me saíram ao caminho nos anos
que levo sobre a terra. São a obra de arte do conforto, das longas horas de
leitura, da conversa diante do fogo que comigo fala no seu tom colorido a que
cada autor se junta para encher o espaço do cântico celestial derramado da
cultura e do saber de todos e de cada um