sábado, agosto 12, 2017

Sábado, 12.
Não era em Alfama, mas sim na Graça de acessos difíceis a partir do Chiado. Daí que tivéssemos tomado um táxi – João, Virgílio, Irmão e eu – não sem que antes o Carlos houvesse discutido com o motorista o trajecto de forma a pagar o menos possível. Enfin en route! É meio-dia e o sol está a pique sobre a cidade que abrasa nos seus 38 graus centígrados. Lagartixas turísticas por todo o lado. Carlos vai orientando o caminho, fugindo à confusão do trânsito sem se dar conta que Lisboa está transformada num lugar de bárbaros, sem qualidade de vida nem aprazíveis momentos civilizacionais. (Bem fiz eu em me ter raspado de lá a tempo!) Chegados ao largo principal onde deveríamos encontrar o restaurante que o Irmão tantas vezes nos sarnou conhecêssemos, verificou-se que o Fátima tinha fechado ou transferiu-se para a Cova da Iria. Que fazer? Virgílio, qual bebé de beiçudo escancarado com fome barafusta, tem urgência em se sentar em qualquer lado. Olha-se em volta: só multidões de estrangeiros em shorts e camisa á cava, saindo de hostels improvisados ou parados nos passeios à sombra das árvores corcundas. Um dos nós aponta um restaurante do outro lado da rua, todos o seguimos de olhos postos na ementa que está numa folha A4, gatafunhada por uma criança de poucos estudos. É ali, Virgílio não pode mais. Avançamos então no interior por um longo corredor levantado entre um balcão e a parede de azulejos de casa de banho, descemos três degraus e entramos num espaço que abre para um pátio minúsculo. É para lá que nos dirigimos recuando de pronto face à estufa que o sítio oferece. Não se pode de calor. Carlos quer a mesa logo ali, nós outra mais para dentro da divisão, os empregados em número de três, apontam-nos uma outra por onde corre uma aragem que não chega a cruzar uma unha de vento manso. Virgílio parece uma criança, com aqueles olhos azuis implorando um assento. Aceitamos a proposta dos criados e abancamos naquela espécie de alçapão forrado de azulejos de wc. Abre-se a ementa, interroga-se o garçon que tem a lição bem estudada e diz que tudo é excelente da azeitona às sardinhas. À excepção do nosso bebé, todos escolheram as sardinhas. Irmão, sempre exagerado, quere-as bem queimadas, nós, Corrgedor e eu, mal-assadas. Chega a bebida que não podia faltar - uma chilra negra que arranha na garganta. A Carlos isso pouco importa. Está, portanto, instalada a discussão. Não é ainda sobre política nem chegou até ao fim a ser. Desta vez os temas vieram e foram sem peso nem consistência bastante para dar espessura ao almoço. João está desgostoso. Ainda por cima, o peixe é detestável, murcho, muito assado, impróprio para o preço que pagámos. Só Carlos está satisfeito, comeu, bebeu, com aquele apetite que um dia o abafará e o levará desta para melhor... Já íamos a sair, saldada a conta, quando os empregados nos travam o caminho, aflitos porque não cobraram o vinho. São, entretanto, três da tarde. Que fazer? Carlos quer digerir o muito que enfardou, num passeio pedestre. Nós outros estamos em desacordo porque o sufoco é muito e parecemos formigas tergiversando na calçada aflitas por uma sombra. João Corregedor tem uma ideia: e se fôssemos tomar uma bebida à margem do Tejo! Porque não! Enfiamo-nos num machibombo que não existia no meu tempo, nascido e criado em Lisboa, pequeno, corcunda, com duas dezenas de lugares. O papa móbil apeou-nos na estação de Santa Apolónia e, seguindo o nosso cicerone, entrámos na gare para sairmos do outro lado onde o rio bruxuleia aos raios do sol vivo. Um anexo espaçoso, todo luminoso, com uma parte avançada sobre a paisagem tremeluzente do Tejo, com Almada e restantes vilas do “deserto” desenhadas no horizonte, entrámos por assim dizer numa cena de um qualquer filme barato concebido para donzelas sonhadoras ou pacóvios a quem acabou de sair o Euromilhões. A unidade hoteleira, vê lá como falas rapaz, está despovoada. Pensa João que vai, enfim, ter uma conversa com sustância, mas quem se atreve a espremer o cérebro ante a canícula que destrói tudo até os neurónios! Nem o Carlos Soares que mistura cerveja com o uísque de Virgílio Domingues e os dois entram logo num limbo desgraçado que tanto humedece o nosso escultor como o põe em gargalhadas que assustam os poucos veraneantes. Eis que de súbito, irrompe uma música que nos acorda do remanso fim de tarde. Corregedor movimenta-se na cadeira, chateado; Carlos metamorfoseia-se em mosquito; Virgílio entrega a alma ao Criador plasmando os seus olhos azuis no vasto manto das águas; eu observo quem está e quem nunca esteve, quero dizer, mergulho nos abismos dos tempos quando aquelas paragens eram um lugar de liberdade onde se podiam viver todas as experiencias sensuais a coberto das noites cálidas dos Estios... Como o inferno dos nossos dias veio para ficar, dispersámo-nos nós deixando a “música” aos outros que detestam o silêncio que em princípio ali devia reinar por sagrado. Os dois escultores tomaram o autocarro; João e eu o metro. Para trás havia ficado um dia insólito e como todos os dias assim vividos, surpreendente de liberdade e camaradagem. A cultura deve nascer espontânea do caos das conversas e do fundo do nada. Ela é irmã da libertinagem, dos impropérios, da falta de conhecimento e do ridículo da vida. As conversas que ela atrai deste modo, são as mais instruídas e interessantes porque nascem do cruzamento dos temas sem ordem nem cátedra, sem preparação nem instrução. A Cultura não serve para nada, senão para fazer face aos arrogantes, aos prepotentes, aos ditadores e aos novos-ricos senhores de um mundo a cair aos bocados.


P.S. Meti-me com os dois brincos que o servente exibia na orelha esquerda : um de prata ( ?), outro de osso ( ?), mas ele despachou-me invertendo o esteriótipo : « Aqui só é gay quem não usa brincos. » Toma e embrulha.