Sábado,
12.
Não
era em Alfama, mas sim na Graça de acessos difíceis a partir do Chiado. Daí que
tivéssemos tomado um táxi – João, Virgílio, Irmão e eu – não sem que antes o
Carlos houvesse discutido com o motorista o trajecto de forma a pagar o menos
possível. Enfin en route! É meio-dia e o sol está a pique sobre a cidade que abrasa
nos seus 38 graus centígrados. Lagartixas turísticas por todo o lado. Carlos
vai orientando o caminho, fugindo à confusão do trânsito sem se dar conta que
Lisboa está transformada num lugar de bárbaros, sem qualidade de vida nem
aprazíveis momentos civilizacionais. (Bem fiz eu em me ter raspado de lá a
tempo!) Chegados ao largo principal onde deveríamos encontrar o restaurante que
o Irmão tantas vezes nos sarnou conhecêssemos, verificou-se que o Fátima tinha
fechado ou transferiu-se para a Cova da Iria. Que fazer? Virgílio, qual bebé de
beiçudo escancarado com fome barafusta, tem urgência em se sentar em qualquer
lado. Olha-se em volta: só multidões de estrangeiros em shorts e camisa á cava,
saindo de hostels improvisados ou parados nos passeios à sombra das árvores
corcundas. Um dos nós aponta um restaurante do outro lado da rua, todos o
seguimos de olhos postos na ementa que está numa folha A4, gatafunhada por uma
criança de poucos estudos. É ali, Virgílio não pode mais. Avançamos então no
interior por um longo corredor levantado entre um balcão e a parede de azulejos
de casa de banho, descemos três degraus e entramos num espaço que abre para um
pátio minúsculo. É para lá que nos dirigimos recuando de pronto face à estufa
que o sítio oferece. Não se pode de calor. Carlos quer a mesa logo ali, nós
outra mais para dentro da divisão, os empregados em número de três, apontam-nos
uma outra por onde corre uma aragem que não chega a cruzar uma unha de vento
manso. Virgílio parece uma criança, com aqueles olhos azuis implorando um
assento. Aceitamos a proposta dos criados e abancamos naquela espécie de
alçapão forrado de azulejos de wc. Abre-se a ementa, interroga-se o garçon que tem a lição bem estudada e
diz que tudo é excelente da azeitona às sardinhas. À excepção do nosso bebé,
todos escolheram as sardinhas. Irmão, sempre exagerado, quere-as bem queimadas,
nós, Corrgedor e eu, mal-assadas. Chega a bebida que não podia faltar - uma
chilra negra que arranha na garganta. A Carlos isso pouco importa. Está,
portanto, instalada a discussão. Não é ainda sobre política nem chegou até ao
fim a ser. Desta vez os temas vieram e foram sem peso nem consistência bastante
para dar espessura ao almoço. João está desgostoso. Ainda por cima, o peixe é
detestável, murcho, muito assado, impróprio para o preço que pagámos. Só Carlos
está satisfeito, comeu, bebeu, com aquele apetite que um dia o abafará e o
levará desta para melhor... Já íamos a sair, saldada a conta, quando os
empregados nos travam o caminho, aflitos porque não cobraram o vinho. São,
entretanto, três da tarde. Que fazer? Carlos quer digerir o muito que enfardou,
num passeio pedestre. Nós outros estamos em desacordo porque o sufoco é muito e
parecemos formigas tergiversando na calçada aflitas por uma sombra. João
Corregedor tem uma ideia: e se fôssemos tomar uma bebida à margem do Tejo!
Porque não! Enfiamo-nos num machibombo que não existia no meu tempo, nascido e
criado em Lisboa, pequeno, corcunda, com duas dezenas de lugares. O papa móbil
apeou-nos na estação de Santa Apolónia e, seguindo o nosso cicerone, entrámos
na gare para sairmos do outro lado onde o rio bruxuleia aos raios do sol vivo. Um
anexo espaçoso, todo luminoso, com uma parte avançada sobre a paisagem tremeluzente
do Tejo, com Almada e restantes vilas do “deserto” desenhadas no horizonte, entrámos
por assim dizer numa cena de um qualquer filme barato concebido para donzelas
sonhadoras ou pacóvios a quem acabou de sair o Euromilhões. A unidade
hoteleira, vê lá como falas rapaz, está despovoada. Pensa João que vai, enfim,
ter uma conversa com sustância, mas quem se atreve a espremer o cérebro ante a
canícula que destrói tudo até os neurónios! Nem o Carlos Soares que mistura cerveja
com o uísque de Virgílio Domingues e os dois entram logo num limbo desgraçado
que tanto humedece o nosso escultor como o põe em gargalhadas que assustam os
poucos veraneantes. Eis que de súbito, irrompe uma música que nos acorda do
remanso fim de tarde. Corregedor movimenta-se na cadeira, chateado; Carlos
metamorfoseia-se em mosquito; Virgílio entrega a alma ao Criador plasmando os
seus olhos azuis no vasto manto das águas; eu observo quem está e quem nunca
esteve, quero dizer, mergulho nos abismos dos tempos quando aquelas paragens
eram um lugar de liberdade onde se podiam viver todas as experiencias sensuais
a coberto das noites cálidas dos Estios... Como o inferno dos nossos dias veio
para ficar, dispersámo-nos nós deixando a “música” aos outros que detestam o
silêncio que em princípio ali devia reinar por sagrado. Os dois escultores
tomaram o autocarro; João e eu o metro. Para trás havia ficado um dia insólito
e como todos os dias assim vividos, surpreendente de liberdade e camaradagem. A
cultura deve nascer espontânea do caos das conversas e do fundo do nada. Ela é
irmã da libertinagem, dos impropérios, da falta de conhecimento e do ridículo
da vida. As conversas que ela atrai deste modo, são as mais instruídas e
interessantes porque nascem do cruzamento dos temas sem ordem nem cátedra, sem
preparação nem instrução. A Cultura não serve para nada, senão para fazer face
aos arrogantes, aos prepotentes, aos ditadores e aos novos-ricos senhores de um
mundo a cair aos bocados.
P.S.
Meti-me com os dois brincos que o servente exibia na orelha esquerda : um
de prata ( ?), outro de osso ( ?), mas ele despachou-me invertendo o
esteriótipo : « Aqui só é gay quem não usa brincos. » Toma e
embrulha.