Quarta,
9.
Eu
vivo ritmado pelo trabalho que aqui nunca falta. Às vezes, contudo, renuncio à
cadeia de produção e fico horas sem fazer literalmente nada. E quando digo
nada, é passar o tempo nas alturas da ociosidade, entre céu e terra, procurando
não ser importunado pelos fantasmas nem pelas personagens do romance que não me
largam um instante. Muitas vezes deixo a quinta e vou pelos prados, pelas ruas
ao volante do carro, como se estivesse de férias e a contemplação fosse a
actividade primeira. Este dolce far
niente é uma forma de carregar baterias, de afastar para longe as
depressões, de conseguir viver comigo nos espaços secretos onde me sinto a
perscrutar quem sou, imaginado ou real. Quando opto por me sentar lá fora, e o
vento chegou para me fazer companhia com o seu canto tangendo nas cordas dos
ramos dos arbustos com vários metros de altura que eu plantei há vinte anos e
cercam a propriedade de um verde que muda com as estações do ano, quase desmaio
nos braços do seu murmúrio dedilhado, arrastado, que percorre de um lado ao
outro os quatro cantos da quinta. De súbito, as árvores e toda a folhagem que
aqui vive em liberdade, junta-se ao seu salmo e a mim que estou no centro da
orquestra como um maestro que só necessita de se impregnar dos sons sublimes
que um compositor fantasista criou para perpetuar a terra e os seres que nela
habitam de hinos transcendentes. Ocorre-me Novalis: “ Le monde d´en haut est
plus près de nous que nous ne pensons. Nous vivons en lui dès ici, et
l´apercevons mêlé à la trame même de la nature terrestre.”
- Apenas para memória futura: a verba
da Câmara Municipal de Lisboa e associada EGEAC para este ano, é de 39 milhões
de euros, ou seja 6% do orçamento da câmara. (Fonte: Catarina Vaz Pinto,
vereadora da cultura, ao Público.)