quarta-feira, agosto 09, 2017

Quarta, 9.
Eu vivo ritmado pelo trabalho que aqui nunca falta. Às vezes, contudo, renuncio à cadeia de produção e fico horas sem fazer literalmente nada. E quando digo nada, é passar o tempo nas alturas da ociosidade, entre céu e terra, procurando não ser importunado pelos fantasmas nem pelas personagens do romance que não me largam um instante. Muitas vezes deixo a quinta e vou pelos prados, pelas ruas ao volante do carro, como se estivesse de férias e a contemplação fosse a actividade primeira. Este dolce far niente é uma forma de carregar baterias, de afastar para longe as depressões, de conseguir viver comigo nos espaços secretos onde me sinto a perscrutar quem sou, imaginado ou real. Quando opto por me sentar lá fora, e o vento chegou para me fazer companhia com o seu canto tangendo nas cordas dos ramos dos arbustos com vários metros de altura que eu plantei há vinte anos e cercam a propriedade de um verde que muda com as estações do ano, quase desmaio nos braços do seu murmúrio dedilhado, arrastado, que percorre de um lado ao outro os quatro cantos da quinta. De súbito, as árvores e toda a folhagem que aqui vive em liberdade, junta-se ao seu salmo e a mim que estou no centro da orquestra como um maestro que só necessita de se impregnar dos sons sublimes que um compositor fantasista criou para perpetuar a terra e os seres que nela habitam de hinos transcendentes. Ocorre-me Novalis: “ Le monde d´en haut est plus près de nous que nous ne pensons. Nous vivons en lui dès ici, et l´apercevons mêlé à la trame même de la nature terrestre.”


         - Apenas para memória futura: a verba da Câmara Municipal de Lisboa e associada EGEAC para este ano, é de 39 milhões de euros, ou seja 6% do orçamento da câmara. (Fonte: Catarina Vaz Pinto, vereadora da cultura, ao Público.)