sábado, junho 20, 2015

Sábado, 20.

Nos fins-de-semana começo o dia pelas seis da manhã. Enquanto a eléctrica chinesa permitir que os seus clientes poupados tenham o quadro bi-horário, aproveito o período até às nove para regar, aspirar a piscina, levar a mangueira mais longe e saciar a cede às árvores. Às nove estou derreado e com a impressão de ter trabalhado para o dia todo. Eu sei que digo isto todos os anos, mas deixem-me repetir para ter a sensação de alivio que o desabafo me causa. Depois despacho-me para o mercado de rua onde encontro os meus pequenos agricultores. Eles nunca faltam e eu nem sempre marco presença como devia. Ontem meti na cabeça que devo terminar definitivamente o romance antes de partir para Paris. A longa revisão (a derradeira) é talvez mais morosa que a criação propriamente dita. Sonhar não custa. Delirar muito menos. Saber-me na cidade-luz sem nenhuma pressão criativa é entrar no paraíso. Depois, a experiência ensinou-me que um texto nunca está perfeito. No caso deste livro já fiz não sei quantas leituras e encontro sempre erros, gralhas, construções mal feitas, troca de personagens, etc. e caetera. Com esforço e concentração julgo que é possível deixar de pousio um labor de dois anos e meio a passar. Por outro lado, é um estímulo para o espírito estar longe e imaginar as personagens sem mim, depositadas na minha mesa de trabalho, em diálogos constantes. Porque um livro fala mesmo quando o seu autor, cansado, arreia o fardo. É verdade que posso sempre, lá longe, espreitar pelo computador o que diz entre si este povo que foi crescendo ao longo dos anos nas quinhentas páginas que formam o todo. Mas faço-o por curiosidade, por coscuvilhice, para constatar se Maria Gordulha está de acordo com José Tormentoso, o secretário de Estado das Finanças com o velho Lascas, se o jardim onde nas tardes abafadas a Juju tem o hábito de ficar a ouvir as vizinhas a viu por lá, se chove no bairro onde a história se passa, se... Há um cosmos complexo dentro dos livros, onde o seu criador deixou a murmurar a sua voz, a sua visão do mundo, do ser humano exposto como um nick name com a força do anonimato, a mesma força que modelou os sentimentos, atirou litanias, acotovelou as esperanças. Um romance é de complexidade esgotante. Quando nos metemos com ele, ele não nos larga um segundo, noite e dia. Somos como que seu escravo, passeando e comendo a seu lado, ouvindo os fluídos mais íntimos das personagens, os minutos onde desaguam todas as mágoas do mundo, levantadas de uma fantasia-realidade exposta com a pudicícia de quem conhece os segredos e não os pode revelar. Ou revelando se revê neles e cede o passo à loucura que leva de enxurrada as palavras aos milhares, num crescendo até ao precipício da morte. Não penso na morte das personagens, penso no destino do escritor, do romancista que ousou acreditar que terminado o livro tudo o que ficou encerrado nele é a prova provada da realidade objectivada e narrada a partir de um facto, de um parágrafo, de uma ideia que teve espessura muito antes da materialização da obra. Em certo sentido, a obra já pouco conta para a revelação. Findo o livro, o mundo fechou-se nele, as personagens tomaram consistência, ao leitor compete torná-lo credível e duradoiro. O autor é um pobre diabo, um andrajoso que ao pátio da aldeia chegou e desatou a contar coisas inacreditáveis que só existem na sua cabeça arrebatada. Não admira que o tenham corrido à pedrada e alguns falecido na forca.