Sábado,
20.
Nos
fins-de-semana começo o dia pelas seis da manhã. Enquanto a eléctrica chinesa
permitir que os seus clientes poupados tenham o quadro bi-horário, aproveito o
período até às nove para regar, aspirar a piscina, levar a mangueira mais longe
e saciar a cede às árvores. Às nove estou derreado e com a impressão de ter
trabalhado para o dia todo. Eu sei que digo isto todos os anos, mas deixem-me
repetir para ter a sensação de alivio que o desabafo me causa. Depois
despacho-me para o mercado de rua onde encontro os meus pequenos agricultores.
Eles nunca faltam e eu nem sempre marco presença como devia. Ontem meti na
cabeça que devo terminar definitivamente o romance antes de partir para Paris.
A longa revisão (a derradeira) é talvez mais morosa que a criação propriamente
dita. Sonhar não custa. Delirar muito menos. Saber-me na cidade-luz sem nenhuma
pressão criativa é entrar no paraíso. Depois, a experiência ensinou-me que um
texto nunca está perfeito. No caso deste livro já fiz não sei quantas leituras
e encontro sempre erros, gralhas, construções mal feitas, troca de personagens,
etc. e caetera. Com esforço e concentração julgo que é possível deixar de
pousio um labor de dois anos e meio a passar. Por outro lado, é um estímulo
para o espírito estar longe e imaginar as personagens sem mim, depositadas na
minha mesa de trabalho, em diálogos constantes. Porque um livro fala mesmo
quando o seu autor, cansado, arreia o fardo. É verdade que posso sempre, lá
longe, espreitar pelo computador o que diz entre si este povo que foi crescendo
ao longo dos anos nas quinhentas páginas que formam o todo. Mas faço-o por
curiosidade, por coscuvilhice, para constatar se Maria Gordulha está de acordo
com José Tormentoso, o secretário de Estado das Finanças com o velho Lascas, se
o jardim onde nas tardes abafadas a Juju tem o hábito de ficar a ouvir as
vizinhas a viu por lá, se chove no bairro onde a história se passa, se... Há um
cosmos complexo dentro dos livros, onde o seu criador deixou a murmurar a sua
voz, a sua visão do mundo, do ser humano exposto como um nick name com a força do anonimato, a mesma força que modelou os
sentimentos, atirou litanias, acotovelou as esperanças. Um romance é de
complexidade esgotante. Quando nos metemos com ele, ele não nos larga um
segundo, noite e dia. Somos como que seu escravo, passeando e comendo a seu
lado, ouvindo os fluídos mais íntimos das personagens, os minutos onde desaguam
todas as mágoas do mundo, levantadas de uma fantasia-realidade exposta com a pudicícia
de quem conhece os segredos e não os pode revelar. Ou revelando se revê neles e
cede o passo à loucura que leva de enxurrada as palavras aos milhares, num
crescendo até ao precipício da morte. Não penso na morte das personagens, penso
no destino do escritor, do romancista que ousou acreditar que terminado o livro
tudo o que ficou encerrado nele é a prova provada da realidade objectivada e
narrada a partir de um facto, de um parágrafo, de uma ideia que teve espessura
muito antes da materialização da obra. Em certo sentido, a obra já pouco conta
para a revelação. Findo o livro, o mundo fechou-se nele, as personagens tomaram
consistência, ao leitor compete torná-lo credível e duradoiro. O autor é um
pobre diabo, um andrajoso que ao pátio da aldeia chegou e desatou a contar coisas
inacreditáveis que só existem na sua cabeça arrebatada. Não admira que o tenham
corrido à pedrada e alguns falecido na forca.