quarta-feira, junho 24, 2015

Quarta, 24.
Há uns tempos que vivo encarcerado numa espécie de Éden, como se habitasse dentro de um Nocturno de Chopin recreado por Bertrand Chamayon. A minha percepção do mundo invisível circula, rasa, voa, sobe e desce, como se o ar fosse leve ou pesado consoante as batidas do coração. O controlo das emoções quando escrevo, o delírio que as acompanha, o dilúvio das palavras, das ideias, tudo em cachão a desabar em simultâneo sobre o corpo da escrita, já não é titubeante nem me mete medo ou enerva. Instalou-se nas horas uma finíssima alegria breve, um assomo de coisa nenhuma traduzido num peso jovial, leve e circulante. Deixei de ter medo dos fantasmas que me acompanham quando escrevo. A própria escrita é - tem sido por este tempo-, uma imperceptível pele que me protege. Estou em paz comigo e com o silêncio e a solidão queridas companheiras. Respiro serenidade, bem-estar, com tempo lastro para ir ao encontro de mim e travar comigo o diálogo que durante metade da vida evitei. Este que sou eu, não reconhece aquele outro que comigo conviveu durante séculos de infinitas perturbações e profundos desalentos. Prouvera a Deus que esta atmosfera, esta aragem salutífera, que por aqui se queda como uma manhã clara e diáfana se eternize...

         - A ideia da família que Fr. Bento Domingues abordou no Público outro dia. Ele refere-se a Mateus 19,3-12 que fui ler ou antes reler. A verdade é que a família tal qual está formada, é uma invenção político-social alimentada pela Igreja. É mais fácil controlar através dos sentimentos e da consanguinidade o homem que deixá-lo livre no campo abrejado da liberdade. O próprio Cristo não escolheu aquilo a que os católicos chamam o “santo sacramento do matrimónio” (leia-se Mat. 10,1-12) que não passa afinal de uma intrujice que leva ao desespero milhares de católicos quando as suas uniões fraquejam ou quebram e ficam impedidos de voltar à Igreja. Jesus Cristo escolheu a liberdade, a vida errante, o silêncio como lugar onde o Pai o esperava a cada instante. Se há algo caro a Jesus, é a linguagem do silêncio. É lá que O poderemos encontrar quando livremente o procuramos.

         - A balbúrdia tomou conta da Rua Augusta. Andam por lá montes de turistas a granel. Chegam em grupo, aproveitando o horror do turismo de massas, contentes com a democratização que possibilitou às classes médias a possibilidade de fazerem o trot-trot nas principais cidades europeias e quedarem-se apalermadas nas esplanadas. É isto que abandalha tudo: cidades, comércio, monumentos, hábitos de vida e de consumo. O espectáculo é degradante, miserável e pouco dignificante. Não me pareceu que os comerciantes tivessem proveito com aquela massa volumétrica que se arrasta como vermes acossados pelo sol. Alguns comerciantes mais afoitos ou espertalhões, estudaram a maneira de os ludibriar inventando soluções culinárias que são puros abortos à tradição da boa cozinha portuguesa.

         - Terminei a revisão (espero seja a última) do primeiro volume impresso do romance. Amanhã desejo começar o segundo dossier e se tudo correr bem, finalizá-lo daqui a dois meses. Para tanto penso espaçar estas ninharias. Ufa!


         - Pediram-me por uma caixa de cloro rápido de 3 kg numa loja aqui perto 33 euros, em Espanha o mesmo produto e peso custou-me 12 euros! É de correr a Badajoz, não só para fugir aos gatunos, ainda para gozar a viagem e o almoço. Em hora e meia e 20 euros de gasolina ponho-me lá.