Quarta,
24.
Há
uns tempos que vivo encarcerado numa espécie de Éden, como se habitasse dentro
de um Nocturno de Chopin recreado por
Bertrand Chamayon. A minha percepção do mundo invisível circula, rasa, voa,
sobe e desce, como se o ar fosse leve ou pesado consoante as batidas do
coração. O controlo das emoções quando escrevo, o delírio que as acompanha, o
dilúvio das palavras, das ideias, tudo em cachão a desabar em simultâneo sobre
o corpo da escrita, já não é titubeante nem me mete medo ou enerva. Instalou-se
nas horas uma finíssima alegria breve, um assomo de coisa nenhuma traduzido num
peso jovial, leve e circulante. Deixei de ter medo dos fantasmas que me
acompanham quando escrevo. A própria escrita é - tem sido por este tempo-, uma
imperceptível pele que me protege. Estou em paz comigo e com o silêncio e a
solidão queridas companheiras. Respiro serenidade, bem-estar, com tempo lastro
para ir ao encontro de mim e travar comigo o diálogo que durante metade da vida
evitei. Este que sou eu, não reconhece aquele outro que comigo conviveu durante
séculos de infinitas perturbações e profundos desalentos. Prouvera a Deus que
esta atmosfera, esta aragem salutífera, que por aqui se queda como uma manhã
clara e diáfana se eternize...
- A ideia da família que Fr. Bento Domingues
abordou no Público outro dia. Ele refere-se a Mateus 19,3-12 que fui ler ou
antes reler. A verdade é que a família tal qual está formada, é uma invenção político-social
alimentada pela Igreja. É mais fácil controlar através dos sentimentos e da
consanguinidade o homem que deixá-lo livre no campo abrejado da liberdade. O
próprio Cristo não escolheu aquilo a que os católicos chamam o “santo
sacramento do matrimónio” (leia-se Mat. 10,1-12) que não passa afinal de uma
intrujice que leva ao desespero milhares de católicos quando as suas uniões
fraquejam ou quebram e ficam impedidos de voltar à Igreja. Jesus Cristo
escolheu a liberdade, a vida errante, o silêncio como lugar onde o Pai o
esperava a cada instante. Se há algo caro a Jesus, é a linguagem do silêncio. É
lá que O poderemos encontrar quando livremente o procuramos.
- A balbúrdia tomou conta da Rua
Augusta. Andam por lá montes de turistas a granel. Chegam em grupo,
aproveitando o horror do turismo de massas, contentes com a democratização que
possibilitou às classes médias a possibilidade de fazerem o trot-trot nas
principais cidades europeias e quedarem-se apalermadas nas esplanadas. É isto
que abandalha tudo: cidades, comércio, monumentos, hábitos de vida e de
consumo. O espectáculo é degradante, miserável e pouco dignificante. Não me
pareceu que os comerciantes tivessem proveito com aquela massa volumétrica que
se arrasta como vermes acossados pelo sol. Alguns comerciantes mais afoitos ou
espertalhões, estudaram a maneira de os ludibriar inventando soluções
culinárias que são puros abortos à tradição da boa cozinha portuguesa.
- Terminei a revisão (espero seja a
última) do primeiro volume impresso do romance. Amanhã desejo começar o segundo
dossier e se tudo correr bem, finalizá-lo daqui a dois meses. Para tanto penso espaçar
estas ninharias. Ufa!
- Pediram-me por uma caixa de cloro rápido
de 3 kg numa loja aqui perto 33 euros, em Espanha o mesmo produto e peso
custou-me 12 euros! É de correr a Badajoz, não só para fugir aos gatunos, ainda
para gozar a viagem e o almoço. Em hora e meia e 20 euros de gasolina ponho-me
lá.