quinta-feira, julho 27, 2023

Quinta, 27.

Devido ao amável convite que o Paulo nos dirigiu, a João e a mim, para retornarmos ao Museu de Marinha, desta vez sem o folclore oficial, tão ao gosto dos enfants de António Salazar. Ele e o Alexandre São Marcos, foram os curadores de um projecto extremamente interessante que comemora os 160 anos da instituição. A figura central da exposição, é João Vaz (1859-1931), o pintor que amou o mar, isto é, a raiz portuguesa. Artista notável que vale a pena conhecer, num acervo que os dois amigos recolheram pelo país, alguns em colecções privadas, outros em museus nacionais, durante meio ano de intensas buscas e negociações. O resultado ali está a provar que se pode fazer coisas bem feitas sem contar com a Marinha que, enquanto organização pública, não gosta de se dar ao esmero e à dignidade de enobrecer o património que está à sua guarda. De contrário, não exibia o laxismo de ter nas paredes do museu (primeiro andar) obras notáveis, mas às escuras, sem iluminação que realce a grandeza do génio do insigne mestre, como de outros da sua geração. E João Vaz merece de facto um olhar atento, um momento de intensa introspecção, a memória a deslizar sobre as águas tranquilas, a beleza da cor, tornada íntima pela absorção de elementos pictóricos que representam a nossa história, o povo que sempre fomos, as aldeias onde o sol bate em fachadas identitárias que ainda hoje são a imagem de um país banhado pelo Atlântico, onde barcos continuam a navegar, a pesca a laborar e os horizontes expostos ao delírio da nossa interjeição. Pintor realista, João Vaz soube como alguns outros da sua geração - uma geração de artistas que marcou o início do século XX – imprimir uma certa forma de modernismo que tem na atmosfera, no conhecimento da cor, no ambiente que irmana quem vê, nas linhas puras que marcam a tela e são por elas extensíveis à grandeza da arte enquanto manifestação humana do gesto divino. Na longa visita que o Paulo nos proporcionou, pude revisitar um museu que era já para mim passado, ressuscitado subitamente pela exposição sentida e querida, de quem culturalmente sabe do que fala.

De um vídeo com o Terreiro do Paço, em 1900.

Pescadores na faina.

Muleta - barco típico do Barreiro

         - Justamente. Quando deixámos o interior para estendermos a vista sobre as águas do rio, sentados na esplanada do outro lado do grande circulo Manuelino, sob um calor assustador, tive o ensejo de dizer ao Paulo que ele fez muito bem em ter deixado a política e aquele cenóbio de intrigas e corrupção que é o Parlamento europeu onde esteve anos. Hoje vejo-o mais solto, mais feliz, inteiro para escrever calmamente os seus livros, o último dos quais esteve aqui em baixo muito tempo antes de subir à estante, porque as suas páginas reconfortavam-me de conhecimento e ancoradoiro às coisas que lhe são queridas. Paulo é rigoroso, o semblante deitado nas profundezas do seu vasto mundo interior, apenas acessível a poucos, uma reserva austera impede que cínicos se aproximem, há no seu semblante um escudo que o defende da mediocridade, e um sorriso simpático que generosamente distribui a quem muito bem entende. Disse-me que em Bruxelas ganhava bem, mais uma razão para eu achar que a nobreza do seu gesto diz tudo do seu carácter. E já agora introduzo aqui Montherlant: “Il faut que je gagne ma vie! Réduisez vos besoins, et vivez à moindres frais dans quelque retraite méridionale. Guérissez- vous-y de ses trois vices, le travail pour le travail, l´action pour l´action, et la rage de faire figure, qui vous retenaient dans le Nord insensé.”