domingo, julho 09, 2023

Domingo, 9.

Apesar das manobras do presidente da Câmara do Porto para impedir a Marcha do Orgulho Gay, o facto é que esta aconteceu e contou com 20 mil a desfilar (nem todos seriam, que diabo, haverá assim tantos na cidade invicta...) com ou sem orgulho. Normalmente, neste tipo de festa, o humor ou descaramento ou  exibicionismo ou provocação costumam causar a chacota, a reprovação, o saudosismo de um tempo em que se vivia para dentro, interpares, o primeiro contacto sexual mais demorado, o conhecimento do parceiro em primeiro a tornar a relação menos perigosa, numa espécie de liturgia que remetia para o recato a relação mais profunda. Hoje todas as uniões, hetero ou homo e até essa coisa absurda do bi, começam pela cama e depois logo se vê se têm pés para andar. Esta constatação, direi que foi sempre o leit-motiv da relação homossexual, não tanto para testar o casamento e o confirmar, mas para vincular uma liberdade que não se submetia à norma estabelecida e muito menos à terrível monotonia dos casamentos ditos normais. Poder-se-ia dizer que a felicidade, a saúde, o horizonte rasgado da vivência entre dois seres do mesmo sexo, contextualizavam um modo de viver que assentava unicamente na liberdade, no prazer e na satisfação dos sentidos. Por ser proibida no antigo regime, tornava-se mais rara, mais saborosa, mais intensa porque ia contra a corrente moral e bons costumes. E para muitos mais perigosa, com a introdução daquele golpe de medo, de coisa obscena, que as latrinas públicas do Estado Novo sem ser esse o seu desejo ajudavam os frequentadores acrescentando o frisson que dilatava a libido, os desejos e os fazia entrar num delírio de espasmos ininterruptos. Nem todos perseguiam a beleza de um corpo na flor da vida. Muitos, sobretudo os casados, irrompiam por esses lugares como doidos, espavorecidos da mulher que ficara em casa enquanto o marido “tardava porque tinha de acabar um trabalho na empresa”. Toda esta fauna de seres vivos, perdidos num país desigual, que tratava os homos importantes de uma maneira e os outros que terminavam nos calabouços apanhados nas célebres rusgas nocturnas. Quantas vezes, sendo enviado pelo jornal para narrar “os ocorridos”, me vi face a face com adolescentes de uma beleza selvagem, aterrorizados e homens casados, apavorados. E quantas vezes, alguns desses jovens escapavam da esquadra porque faziam o jeito a um ou outro guarda que disfarçava na dureza das ordens e na importância da farda, o vulcão de insatisfações e frustrações que desaguavam num momento fugaz no corpo do detido. Eu conheci um ou outro fardado, porque os rapazes mo apontavam. Ao olhá-los, identificava facilmente pelo comportamento assertivo e mandão, a retaguarda onde pululava qualquer coisa bizarra, não identificada de imediato, mas onde sub-rogava um olhar, um desassossego, uma avidez que trocava as voltas à autoridade moral e aos bons costumes que juraram manter. Excedi-me. Reparo agora que aquilo que aqui queria deixar, era a salutar frase de Filipe Gaspar da Comissão Organizadora do tal orgulho gay, que me arrancou uma saudável gargalhada e dura desde as nove da manhã até agora 15 horas e quarenta e dois minutos: “Vamos passar em silêncio junto ao hospital por respeito às pessoas que lá estão. Não somos bichos, somos bichas.”