quarta-feira, julho 05, 2023

 

Quarta, 5.

Ontem passou-se algo de estranho enquanto esperava para ser atendido pelo Dr. Cambeta. Aguardava na vasta entrada do edifício que me chamassem e, como não posso estar sem fazer nada ou dependente apenas daquela inutilidade de tempo que os consultórios médicos em Portugal enchem com a estuporada de programas da manhã nas televisões, mergulhei no livro de Henry de Montherlant. Viajava com o escritor por Monserrate, quando ouvi distintamente uma voz que chamava por mim: “Helder”. Vinha o apelo de muito longe, de um lugar sereno, parecendo empurrado pelo vento, pois era nítido para mim que não surgia hirto, nu, límpido, mas aconchegante como se o tom me fosse familiar e não oferecesse perigo algum. Entre duas batidas do coração e o mergulho nas páginas do célebre autor, aconteceu um hiato indescritível, espécie de suspensão do tempo, ali traduzido pela irrupção da felicidade mais cristalina que me envolveu na serenidade confortante da meninice. Prossegui na leitura, mas a realidade que nela se me oferecia, no espaço de um minuto, alterara-se – estava em Monserrate, mas de saída para um mundo outro sem paralelo com as duas realidades: a real e a passada. Ao fim de alguns minutos, escuto outra voz que me pareceu estar próxima de mim: “Sr. Helder de Sousa”. Olhei como quem chega de algum lado e se surpreende por encontrar alguém que o espera com o seu nome escrito numa folha de papel – era a assistente do Dr. Cambeta. 

         - Ao arrumar uns livros na biblioteca de cima, dei-me conta que já li as Memórias de Adriano três vezes: a primeira em português, as outras em francês. 

         - No noticiário da France 2, imagens époustouflants de Montargis depois da passagem dos vândalos. Quanto vai custar a reconstrução de tudo o que foi destruído pelos delinquentes adolescentes e outros no fim-de-semana em França? 

         - Como se esperava o relatório das carambolas da TAP feito pelos socialistas no Parlamento, resultou na conclusão habitual: a montanha pariu um rato. Ainda a Assembleia da República. Aquela entrada triunfal de um tal Pedro Nuno Santos no hemiciclo, candidato a ditador, com exercício do poder já registado, onde só faltou a banda da GNR e o Quim Barreiros, foi um triste espectáculo à moda portuguesa que mostra como se enobrece a política. A impressão com que fico sempre que vejo as sessões diárias, é a de um aluvião de gralhas assanhadas de ódios.