sexta-feira, julho 22, 2022

Sexta, 22. 

“Conheci muitos corpos entretanto, comparei as tuas pernas a outras pernas, os teus seios a outros, as tuas mamas a outras, a forma como movias os quadris nessa altura em que não sabíamos, eu e tu, qual de nós deveria mover os quadris, e tu fazia-lo para que não ficássemos quietos, havia mulheres louras na minha vida, louras que se acanhavam e me oprimiam, e ruivas, sobretudo ruivas, que fingiam orgasmos, e morenas que adormeciam lentamente, e em cada uma delas havia sempre um segredo e eu nunca vi esse segredo, porque havia sexos carnudos, húmidos, molhados, febris, tristes, magoados, eufóricos, mortificados, estudados, espontâneos, sem destino, que cheiravam a perfumes e outros a sal, compactos, transparentes e magníficos, suculentos como um fruto, livres, difíceis, intensos, transtornados, necessitados, esquecidos, ignorados, esfomeados, compadecidos, ternos, meigos, suaves, raivosos, lúbricos, cobiçados, contaminados, arrependidos, frescos, frios, admiráveis, irritados, prodigiosos de calor e de coragem, vaidosos, volumosos, tranquilos como baías recolhidas de uma ilha, inoportunos, expressivos, astuciosos, cautelosos, acobardados, ruidosos, alvoroçados, estouvados e perdidos de comoção, sexo esquecido e sexo que se adivinhava olhando o rosto, atrevidos, deprimentes, que se experimentavam por prazer e que se experimentavam porque a dor que causam era demasiado profunda, brandos, aveludados, luminosos, incandescentes, afadigados de tanto quererem ser queridos, prudentes como serpentes, sequiosos, e de todos eles senti o cheiro, a mágoa, a respiração, o murmúrio zangado ou embaraçado enquanto se continham, corpos longos cujo perfume causava calafrios ou, tão só, a vontade animal de possuí-los, corpos perfeitos, corpos imperfeitos que se encolerizavam e se mostravam melancólicos, corpos gastos por outras mãos, corpos em desordem que buscavam a desordem, corpos audazes, estranhos, irrisórios, agitados por uma convulsão sem tempestade, e de todos eles conservo essa respiração, os enganos, aquilo que neles era vulgar, ordinário, uma espécie de motim esperado e ridículo, corpos pálidos, disciplinados, vagabundos, preguiçosos.” 

Depois, Filipe Castanheira, a personagem polícia, recordando a sua primeira vez, pergunta: “Que nome dás a isso de fazer amor?, é um pouco ridículo, vamos lá, talvez foder, procurar qualquer coisa no outro corpo que o teu não tenha, e ofereces o teu em troca desse instante em que aquele calor se sente mais insuportável ou só mais forte.” (p.p. 191 e 192, Ed. Porto Editora).  Enfim, o vazio. O vazio depois da explosão maravilhosa da vida acompanhada das iras divinas a projectar-se sobre as páginas de um livro, num instante indizível, num estado de graça único, que entra na escrita para fazer dela um marco inolvidável de verdade e poesia, suor e sangue, paz consumada na recordação, na eternidade da arte como marco do espírito e da liberdade. Bem-aventurado sejas, Francisco José Viegas!