quarta-feira, julho 27, 2022

Quarta, 27. 

Em conversa, manhã cedo, com os trabalhadores que cuidam do oceano de vinha que me cerca, um deles lamentava o incêndio da “nossa serra”. Digo-lhe: “Que a câmara devia cuidar e não o fez. Se fosse um privado aplicavam-lhe uma multa que o homem não se levantava mais.” Resposta: “Tem razão. É por essas que o povo se revolta e ateia os fogos. É tudo por vingança.” Ninguém é responsabilizado, os funcionários públicos estão defendidos pelos seus sindicatos que, por sua vez, estão escudados pelos partidos. O povo amocha. Bela democracia que serve os interesses de uns e outros deixando de lado os da maioria!  

         - Pelas nove da manhã chegava ao Largo do Rato, depois de deixar para trás o Fertagus das oito a abarrotar de passageiros. Devo dizer que vivi toda a minha vida a seguir à adolescência (antes na Rua do Salitre, junto ao Palácio dos Duques de Palmela), entre o Príncipe Real e esta artéria da cidade. Foi, pois, para mim um horror, ver o metro à cunha e a saída para a rua com filas enormes na plataforma para passar as barragens automáticas. Que mundo! De onde vem tanta gente! Que cidade é esta onde nasci e não a reconheço hoje e a identifico com um pesadelo de que me livrei ao abandoná-la por Palmela. Nunca me arrependi pela escolha do campo onde vivo hoje, mas ante estas assombrações ainda mais louvo a minha decisão. 

         - Não vale a pena bater no ceguinho? Vale, vale. Nunca a vigilância foi tão imperativa. Ninguém parece dar-se conta do arrasto de mediocridade e miséria em que a sociedade portuguesa cai cada dia. Ele é visível na televisão, em todos os canais à excepção do 2, no discurso político, sindical, social e até religioso. A miséria humana é tal, que vale tudo: mostrar as mamas, o rabo gordo onde se incrusta apenas um fio dito dental, nauseabundo, o sexo aparado sob vestidos transparentes, os programas de conversa íntima, onde as grandes figuras e figurões confessam as traições, a vidinha humilde de onde emanam, se possível com cachões de lágrimas à mistura, porque rende e a estação sobe audiências; os concursos ditos “serviço público” e os outros ditos “culturais”, uns e outros na mira dos incautos, dirigidos por analfabetos selecionados/as pelo corpinho que depois ficamos séculos a ver definhar, engordar, perder o cabelo, arredondar trejeitos, sob a capa da sabedoria adquirida no Google; sem falar nos estuporados entretenimentos culinários, com as receitas fora de prazo e o sabor a azedo; ou os concursos disto e daquilo, com os mesmos apresentadores fazendo boquinhas e olhinhos, muitos suspeitos mesmo enquanto pais e mães; ou a festa que dizem o povo adorar e lhes é servida em doses pirosas, nas vozes desafinadas de cantores vindos não se sabe de onde, com poemas de faca e alguidar, de cama e sexo repolhudo, feito à medida da populaça que conhece como ninguém os nomes paralelos das coisas e dos coisos que mulheres e homens trazem à nascença entre as pernas e possui até formação superior na pindérica vida que ali vêem retratada, como se a sua tivesse a mesma dignidade e destino, irmanada numa choldra social que tanto favorece os políticos, iguais em destino e condição, ao povo que pastoreiam com palavreado falso, gasto, festivo, efémero, também eles despindo as emoções, cobertas de uma lágrima prontamente enxugada que a televisão tudo suga, guarda e pode servir em momento propício de urnas; o inglês pós-moderno que nenhum professor de Oxford entende cantado, falado, malbaratado no alinhamento de programas, daquelas e daqueles apresentadores, muito vivos, muito cultos, em calções, peitos abertos, depilados, numa ladainha merdosa que embrulha entrevistados numa piedade cristã que toca ao choro, à compaixão, ao miserabilismo que dá audiências e alimenta o que há de pior nos corações de um povo já de si cristão à moda do temor à Igreja que tem em Deus o vingativo. E que dizer dos noticiários muito compridos, espécie de espectáculo, quanto mais dramáticos melhor, assassinatos, guerras, fomes, trovões, incêndios, assaltos, mortes, tudo o que há de mais abjecto no ser humano não pode faltar à mesa principesca dos ditos jornalistas, que relatam esses horrores com uma ponta de vivacidade e outra de sadismo; tudo, incluindo a publicidade, pensado para atrasados mentais, para um povo manso, reconhecido, que dispensa porque dá trabalho o pensamento crítico, a reflexão, o estudo e o conhecimento do mundo em transformação. É tudo uma grande merda, mas colorida, odorífica, suave, que escorrega pelos sentimentos e desaparece no enorme vazio que fica quando a festa acaba.