sábado, julho 31, 2021

Sábado, 31.

Ontem reunimo-nos cinco com o Guilherme no seu restaurante preferido na marina de Belém. Que desastre! Que tristeza de almoço! Que comensais mordidos pelo enxame de insectos que é a velhice! Nada se aclimatizou: a ameaça do coronavírus, o recinto fechado e quente, o barulho ensurdecedor que não permitia a conversa, as lulas duras de roer, o preço exorbitante, o passado imobilizado a armar o presente num campo minado de sombras. Que c´est triste vieillir, bon Dieu! 

         - Outro dia, caiu-me literalmente um parafuso no prato. Soltou-se da ferraille onde assentam os quatro implantes. Levei a peça ao dentista que, sem se espantar, se dispôs a pô-la no sitio. “Isto vai doer um bocado. Quer que anestesie? Não. Prefiro que não.” Com uma chave de parafuso, inicia a colocação da tarraxa. Eu vou aguentando como posso, o corpo deslizando na cadeira. A dada altura diz-me ele: “Já não posso vê-lo sofrer. Desculpe, mas vou aplicar um pouco de anestesia. Se isso o descansa...” remato eu. 

         - Morreu Pedro Tamen. Via-o de vez em quando por aqui e um dia enviei-lhe o meu electricista para resolver um problema que se arrastava lá em casa. Há uns anos havia-se instalado nos Barris e dizia que não tinha precisão de ir a Lisboa, porque aqui tinha teatros e cinemas como na capital. Traduziu Proust e compôs excelente poesia, trabalhou para a Cultura e escolheu o campo para findar os seus dias. Temi que falecesse quando terminasse o último volume da Recherche, fazendo jus a uma maldição que diz que todos os tradutores de Proust e Joyce morrem pouco tempo depois. Acontece que Pedro Tamen ainda sobreviveu uns anos; já João Palma-Ferreira - que me dizia com frequência que iria desaparecer assim que terminasse a tradução de Ulisses – fenece no mesmo ano em que acaba o descomunal  trabalho para Livros do Brasil, em 1989.  

         - Anda aí um vento desalmado que leva tudo na frente. Precisava de regar, mas prefiro não deixar o interior da casa onde estou muito bem mergulhado em leituras e o alinhamento destes textos e há instantes vi no ARTE um documentário sobre o imperador Nero. Tácito e Suetónio, por sinal, saem muito mal tratados. Vou ter que rever um e outro.