sábado, julho 17, 2021

Sábado, 17.

A semana passada, no hospital Dona Estefânia, durante os três quartos de hora que durou a avaliação ortóptica, houve uma empatia misteriosa entre mim e a médica que fez o estudo. Às tantas, enquanto ela operando com toda parafernália de material, numa espécie de entretenimento infantil, qual Xerazade que entretém com riscos, lentes, linhas horizontais e verticais, piscadelas de olho, luzes de múltiplas cores, que apareciam e desapareciam, se transformavam em minúsculos pontos a sair de um cosmos aprisionado numa máquina, foguetes que suflavam, a minha íris investigada até ao mais profundo de mim, como se ela constatasse informação sobre o meu passado de adolescente curioso, malandro, que viu de tudo, do bom e do mau, do sensual ao religioso e tudo não fosse na sua forma criminosa ou beatifica parte de um tesouro que fui guardando ao longo dos anos e naquela hora franqueada assim sem mais à curiosidade de uma médica, que anotava no computador todos os segredos que nunca contei a ninguém. Para não lhe dar tanta chance de compenetração e de algum modo impedi-la de galopar livremente pelos anos de loucura que foram os meus, entregue à curiosidade das paixões levianas, às doidivanas auroras em lençóis de espanto e prazer, beijos arremelgados, a dada altura, pus-me a descrever como faziam os romanos para extrair a catarata. Desci a um tal pormenor, que já não tinha na minha frente a clinica séria e minuciosa, mas alguém que parecia encantada com o que escutava e nas feições ia trazendo do passado o rosto maravilhado da menina que ficara cativa da magia das palavras.   

         - Assoprei o tempo da paz divina. Desde que não me deixe tomar pelo nervosismo que assalta as páginas em branco; não me precipite sobre as tarefas que nunca acabam; não desfaleça das horas cheias das velas desfraldadas ao vento; as portadas cerradas, o interior fresco fundeado no lusco-fusco, quando a tarde chega ao fim e lá fora passeia o fogo fátuo; deixe deslizar os minutos recolhendo o tempo lasso, com espaço para rever a harmonia que aqui reina; olhar a envolvente da casa branca onde a calma se espojou e não se escuta nenhuma cigarra ou pássaro perdido; desde que me concentre em nada fazer, num adeus à loucura de outras épocas, quando o desassossego me tolhia e os decursos do coração cintilavam ao chamamento que vinha do fundo da terrível insatisfação; então aqui como no meu interior tudo se conjuga para que a paz desça dos fios dos silêncios eternos e me envolva na doce melopeia da vida plena...