sexta-feira, julho 23, 2021

Sexta, 23.

Ontem, antes mesmo de darem as oito da manhã, já eu estava no Chiado. Fui no Fertagus das empregadas de limpeza, dos pedreiros, dos empregados dos pequenos empregos mal pagos e regressei no comboio dos sonâmbulos. Comecei o dia com a minha gestora de conta na CGD, desci depois à Brasileira para me encontrar com a Carmo Pólvora e com ela almoçar na esplanada do Corte Inglês, apanhar de seguida um táxi para a Lapa onde ela mora e têm atelier, e três horas mais tarde outro para o Largo do Carmo para nos juntarmos a um vasto número de amigos presentes na inauguração da exposição do Guilherme Parente “De Belém ao Carmo”. Quando pus a chave à porta, tinha o Black a gritar de fome (embora a Piedade lhe tivesse dado o almoço) e a insultar-me de vagabundo para cima. Logo que ele comeu, subi desesperado ao quarto e atirei-me a um sono profundo e directo até às sete horas de hoje. 

         - Foi, portanto, um dia pleno. Retenho ainda na memória a magnífica obra da Carmo, as diversas telas que ela desencantou naquela selva de livros, quadros, serigrafias, pincéis, tintas, aos montes pelo chão, mesas, estantes com um estreito carreiro por onde ela me levava em busca dos trabalhos que me queria dar a conhecer, todos de uma complexidade e profundidade que atraíram da Natália Correia aos críticos de arte dos anos Setenta e Sessenta, em exposições da China a Angola, do Brasil a América do Norte, com paragens frequentes pela Europa. Pólvora é aquilo a que se chama um artista internacional e assim está presente em livros de arte ao lado dos maiores pintores não só portugueses como estrangeiros. Admirei coisas espantosas, com um domínio temático impressionante, combinações de azuis difíceis de conseguir deixaram-me estupefacto. A gente olha e volta a olhar e não despega do quadro, como se ele nos hipnotizasse e nos incorporasse enquanto matéria da sua própria matéria. A policromia em degradê que mergulha nos fundos de espaços sem fim, de um expressionismo que reinventa a palavra através de sinais, signos e espaços cujas temáticas se perdem em meandros técnicos de uma força e sensibilidade extraordinários. São elementos gráficos a impor ao todo a harmonia que nos encanta e sobra em luz e pureza, em sensualidade e íntima postura perante uma arte que parece reinventar a modernidade com toda a carga de tradição e feitiço. 

         - Hoje, enfim, não tendo saído daqui, pude nadar, fazer a sesta, ler e sonhar.