Quinta,
27.
Prossigo
o arrumo dos livros, aproveitando para limpar o pó a cada um e a estante que
vai de um lado ao outro, de cima abaixo da parede. Que mundo ou antes que
mundos! A cada passo tropeço num título, num autor e à memória vem o instante
em que o descobri, os momentos eternos consagrados à sua leitura. Felizmente
que o cérebro possui a capacidade de reter só o que lhe convém. De contrário,
com tantos quilómetros de páginas, estaria esmagado de cansaço e a memória estagnada
de esgotamento. Se Deus me desse mais uns vinte anos de vida, voltaria à maior
parte daqueles volumes e refrescaria os dias na recordação da sua descoberta,
no entusiasmo da sua leitura, na absorção de ideias e filosofias que nortearam
a pessoa que sou e com a arca de horas felizes ao seu contacto, partiria então
ligeiro e mais humano, pronto para conhecer o mundo que me espera no fio denso
da eternidade...
- Sanders vai à frente pelos
democratas na corrida às presidenciais dos Estados Unidos. Espero que desta vez
o seu partido não tenha a veleidade de o substituir por uma qualquer dondoca
tipo senhora Clinton. Porque apesar da idade, os jovens que põem de lado
qualquer ser humano com mais de cinquenta anos acautelem-se, e assentem os
olhos no dinâmico septuagenário. O líder, lá para os lados americanos, é
considerado comunista. E no entanto, as suas ideias são o que há de mais equilibrado
e sensato.
- Vou mais uma vez citar Lídia Jorge e
com que prazer o faço: “...nas editoras é preciso haver uma alteração. Quem
escolhe livros para a sociedade tem um papel fundamental e não pode estar
esmagado pela ameaça das vendas que não acontecem, porque o que hoje se vende é
lixo.”
- Já que cito Lídia Jorge, convoco
também Ovídio que fica bem ao lado da excelente escritora e vai de acordo com o
momento que traz meio mundo em pânico: “Como é bom ir entre altos astros, como é
bom deixar esta terra, morada inerte, e, levado numa nuvem, pousar nos ombros
possantes de Atlas, e, de longe, observar lá em baixo, os homens vagueando à
toa, desprovidos de razão, assustados, cheios de medo de morrer.”
- Nunca os acantos que decoraram os altares dos templos gregos estiveram tão
exuberantes. A centenária oliveira que eles atapetam com a beleza das suas
folhas milenares, sorri de contentamento e eu com ela quando ao fim da tarde me
sento no rebordo de tijolo construído pelo saudoso Ti Luís a ruminar
sentimentos venturosos.
- Acode à tarde clara uma quietude de
verão. A Piedade andou aí a limpar o que a estante de cima sujou com sua montagem.
A porta da cozinha está aberta de par em par e entra desusado o sol que invade
o vasto espaço de luz e seca o chão da esfregona que aí bailou às ordens da
minha empregada. O Black foi ao Haiti em busca das cachopas doidas de cio. Há
dois dias que não aparece. São 14 horas e 36 minutos.