quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Quinta, 20.
Assim que a Piedade entrou, saí eu. Como sempre apressado para fazer o muito que tenho diariamente em agenda. Sobretudo nesta altura do ano quando, como filhos que não tenho, os trabalhos no campo se multiplicam e a natureza nos seus ciclos não espera. Logo pela manhã fiz a calda Bordalesa que aplicarei nas árvores depois das podas sem dó que os podadores realizaram. De seguida ou em simultâneo, há que atacar o mato rasteiro que se multiplica como políticos assanhados, o jardim, o corte da relva, preparar a casa para a chegada dos amigos, etc. Lamentas-te tu? Não. Absolutamente, não. Mas que gostava de ter alguém que ajudasse, lá isso... Acode-me à ideia Sophia quando lhe deram um prémio qualquer, ela respondeu tendo em vista a filharada: “Do que eu preciso é de uma empregada!” Mas esta azáfama é vida, é entusiasmo, é nervos soltos no campo raso dos dias preenchidos. Que tristeza é viver fechado num modesto apartamento em Lisboa ou noutro sítio qualquer!

         - Pois é. Larguei ao fim da manhã, montado no popó, para Alfragide, deixando para trás o pára-arranca até à ponte como sempre foi e será, os portugueses miseráveis têm no carro o seu trono promocional, andar em transportes públicos é descer de categoria. Assim pensam os nossos políticos também que nunca se veem no metro, autocarros ou comboios. Fui ao IKEA comprar uma estante para reunir as dezenas de livros dispersos por cadeiras, mesas, sofás, vãos de janelas. A Gi e o Vítor deviam juntar-se a mim e depois das compras almoçarmos no restaurante da loja. Mas a Gi, coitada, ela familiares e amigos estão dependentes do seu estado de saúde que muda quando ninguém espera. Por isso, por lá andei uma série de horas, aproveitando para comprar o que me fazia falta. No final é que foi o cabo dos trabalhos. Quando pensava que entrava no carro a estante com dois metros de altura, pesadíssima, que tive de retirar do carrinho para a parte de trás da viatura, transpirando e maldizendo as forças que se recusavam ao serviço. Quando, enfim, obtive quase a vitória, faltando o empurrão que um senhor que ia a passar ajudou a dar, respirei de alívio. O homem ao afastar-se desabafou: “Você vê-se que é de têmpera!” Ri-me, satisfeito. 

         - Dali fui ao Corte Inglês comprar o jantar e ala, que se faz tarde. Atravessei a cidade de automóvel coisa que não fazia há uma data de anos e, portanto, com mil cuidados porque nada (ou quase) está como dantes. A Avenida FPM com aqueles prédios forrados a vidro e mais adiante a da República cheia de mamarrachos a armar à América, que os autarcas saloios adoram, de forma a tornar civilizada uma capital que sempre foi provinciana, achando que aquilo é progresso civilizacional quando, na verdade, a cidade vai perdendo os alicerces que a tornaram única e original, com sua arquitectura própria que não se via em mais lado nenhum, e era como as igrejas motivo para os estrangeiros se deslocarem ao nosso país. Os pacóvios que nos governam, ignorantes do passado, incultos e aberrantemente de mau-gosto, julgam marcar o seu reinado com pacotes avulso de bairros e freguesias à moda do que se vê lá fora, por si já autênticas paletas de uma frialdade, de uma soturna e fantasmagórica repugnância.


         - Tempo sublime. Dias quentes, noites frias. A casa está num primor, cheira a limpa, o soalho brilha, os livros sendo mudos, falam que se fartam.