Terça, 3.
Depois a gente chega e é o país como ele se conhece
que nos entra primeiro pelos sentidos e logo de seguida pelo coração. O
aeroporto é a imagem do todo, com sua desorganização, vultos de pessoas
vestidas de escuro, longos corredores semelhantes aos desafios que há que
vencer aqui como por todo o lado. Felizmente em nosso auxílio vieram as modernas
tecnologias que nos permite ter um motorista à nossa espera, atravessar a
cidade e chegar em meia dúzia de minutos a casa. Assim que metemos a chave à
porta, uma cavalgada de emoções invade-nos, idênticas em tudo àquelas das primeiras
manhãs quando aqui chegava tocado pela magia do campo, dos odores das lareiras,
do inverno que hesita em se acomodar, da terra já coberta do tapete verde das
muitas ervas, os pingos da chuva suspensos dos ramos das árvores, dois pássaros
agitados no espelho da lareira, o cheiro adorável dos livros, da cera que a
Piedade pôs por todo o lado, do perfume das limpezas anuais, do silêncio misturado
com a beleza das laranjeiras decoradas com frutos vivos, enfim, tudo aprontado para
receber o viajante fatigado das longas jornadas parisienses...
Mas depois, acerca-se-nos uma sensação
estranha - parece que deixámos o país na véspera. Esteve Portugal morto,
suspenso? Calaram-se as vozes daqueles que a revolta não deixa sossegar? Este
povo está tão contentinho que se acomodou à mediocridade, à fatalidade, ao
desespero íntimo? Bastar-lhe-á a vidinha ronceira, feita de pequenos prazeres,
quecas ao fim-de-semana e lupanares aos feriados municipais? Estarão todos
rendidos aos sorrisos macacos dos políticos, aos seus discursos enviesados, às
suas promessas falsas, à sua lustrosa imagem de pipis da tabela, odres inchados
de arrogância e satisfação pessoal? Assim me pareceu. Mas quando abri os
jornais e liguei a televisão, tive a certeza que o país havia ficado parado à
minha espera. Lá estavam os craques boçais do futebol, os jornalistas pagos por
baixo da mesa, os oportunistas palradores, os concursos, a patetice costumeira,
tudo “em família”, como se o aparelho que os reúne fosse o olho que os vigia,
os orienta, os submete numa lassidão acomodatícia que lhes paralisa o cérebro,
os nervos, transformando-os em verdadeiros palhaços que qualquer parlapatão subjuga.
- O avião que me trouxe de volta ao país submerso na pobreza que o sol
encobre, partiu com hora e meia de atraso. À minha frente, tinham-se instalado
três negras imponentes, de fartas cabeleiras, corpos descomunais que pareciam
ter chegado de uma espécie de black
friday, tal o número de garrafas de tintol que cada uma sacou das
respectivas malas. Já entraram bêbedas, hilariantes, os rostos belos, esgazeados,
as gargantas abertas, apropriando-se do local como se fosse a sanzala onde a
festa não termina nunca. Chegada a esmola minimalista na forma de refeição que
a Air France oferece, elas pagaram mais umas quantas garrafas de branco e
tinto. Se a festa já era de estrondo, ficou de abafar o ruído das estrelas. Os
passageiros protestaram, eu enfiei os fones de papel nos ouvidos, mas a
cumplicidade (estranha) de uma assistente de bordo que parecia grudada nelas, não
ousou controlar a situação. Quando chegámos a Lisboa, as três deixaram o avião
e caminharam à minha frente pelos corredores longos que nos levam a recolha da
bagagem cantando, dançando, abraçando-se num descontrolo impressionante. Eu que
tinha projectado terminar a revisão do primeiro capitulo do romance durante a
viagem, renunciei e entreguei-me ao espectáculo degradante daquelas que decerto
seriam familiares da menina Isabel dos Santos. Ou talvez não, valha-me Deus!
- Entrei na fnac e comprei o segundo tomo do volume IV da Bíblia na
tradução de Frederico Lourenço. Se tivermos em conta o Diário de Julien Green,
os dois somados andam pelas 2000 páginas. Conclusão: tenho leitura para mais de
um mês.
- As primeiras leituras dos jornais, deixam-me apreensivo: os
socialistas (quem haveria de ser!) querem impor sem referendo a regionalização.
O Mágico, atirou, inclusive, com uma nova possibilidade que eu não percebi bem,
mas encheu para já o olho aos nossos felizes autarcas. Ditosamente temos a
menina do BE, o híbrido dirigente do PSD e o Presidente da República que sabe
mais disto que todos eles, a avisar que são os portugueses que devem decidir do
seu destino. Os socialistas nunca perceberam nada de finanças, doutorados como
são em propaganda, nem contas fizeram ao rombo nos cofres do Estado que uma tal
orientação acarreta. Claro que os edis estão rubros de contentamento. Sendo na
sua maioria quase analfabetos, vindos de camadas para quem o dinheiro importa, (veja-se
os automóveis topo de gama que alguns compraram assim que chegaram ao poleiro
das câmaras), chamados à política pelos interesses partidários, é natural que a
promoção e largas somas de dinheiro não só os eternize nos postos, como os
enriqueça.
- Na fnac deparei com um tipo calvo, baixote de estatura, que se
pavoneava com oito guarda-costas vestidos de cangalheiro e com os auriculares
nos ouvidos que o seguiam de perto. Não sei quem era, provavelmente um político
estrangeiro que veio acompanhar a pequenota sueca vedeta do planeta, que anda a passear
por todo o lado, à conta do populismo ridículo que atacou meio mundo. Quem disse que vivemos em democracia?