Sábado, 7.
Rui telefona-me com muita frequência de Inglaterra.
Ficamos à conversa por vezes mais de uma hora. Ontem ele disse-me algo
impressionante que não me recordo haver acontecido: disse que a dada altura eu
tinha uma pequena barriga e que ele me tinha incentivado a perder, “foi então
que tu começaste com a natação”, acrescentou. Nesse tempo, ele devia andar
pelos dezoito anos garbosos, ia ao ginásio todos os dias, era um rapaz com
aquele picante bizarro do rústico bonito, com sensualidade natural que provoca e
desorienta quem se aproxima. O retrato de hoje aqui traçado noutras linhas,
está equidistante deste que acabo de descrever. Acontece que entretanto casou,
teve três filhos, descasou, vive numa casa de campo nos arredores de Manchester
e entrou nos quarenta. O passado, porém, não se esquece. Sobretudo quando o
percurso, digamos, natural ficou cumprido e os sentidos acordam os momentos
marcantes de toda e qualquer vida... Só as circunstâncias, os impulsos, a
liberdade adquirida na força da solidão é outra, pressionando noutras latitudes
- a amizade e a ternura permanecem. Até porque o que vem na avalanche das
recordações inunda de hesitações as épocas e os lugares, e restaura os momentos
com os seus risos cheios de felicidade e palpitação dos ensejos idos. Assim pelo
sorriso, a naiveté, a conversa
periclitante, continuo próximo dele.
- Li os anos 1919 a 1928 do Diário
Integral de Julien Green. Nascido em França de pais americanos, é natural
que tivesse feito a sua formação nos EUA, mais precisamente na universidade de
Virgínia, onde desponta a veia diarista e mais tarde de escritor. Pouco antes
de deixar Paris, já tinha abjurado o protestantismo para se converter à
religião católica. Na universidade, sente-se só, solitário, alheado dos
camaradas à excepção daqueles que a sua natureza sensual não deixa escapar. Aí
farta-se de escrever, textos na sua maioria de carácter religioso, numa
indecisão entre deixar o mundo para ingressar numa ordem religiosa, ou ficar no
centro dele e procurar nas sombras e nos espaços de luz a felicidade.
Regressado a Paris, trazendo na mala uma quantidade de projectos literários,
logo procura editor que aceite publicá-los. Em 1926 conhece Robert de
Saint-Jean e os seus dias vão sofrer uma reviravolta. Ambos são inseparáveis e
as entradas no Diário são quotidianas: “Mon petit garçon” (Pág. 68), “Cette vie
belle et douce je la dois à mon Robert bien-aimé” (Pag. 72), “Mon Robert adoré”
(Pag. 74), “Donner tout à Robert”; “je souffre d´être seul et loin de Robert.
Je l´aime tant” (...). (Pág. 75), “Tout ce qui n´est pas mon Robert n´existe
pas” (Pág. 76), “Mon Robert, mon petit enfant, je pense à toi sans cesse” (Pág.
78), “Toute ma vie est en Robert” (Pág. 80) e por aí adiante. Escandalizo-me
eu, não! O que me insurge, é a criação que de si próprio fez o autor. Disse e
está registado no Diário que publicou em vida, que a relação que sempre teve
com o escritor e jornalista Robert de Saint-Jean era platónica. Dito de outro
modo, ninguém é obrigado a confessar em público as suas grandezas ou as
pequenas misérias. Cada um que interprete a seu modo o que um escritor conta
nos seus diários e, sobretudo, nos seus romances que é onde está inteiro sob a
capa das suas personagens. Ponto final. Agora dar uma imagem de santidade, de
heroico na medida em que conseguiu vencer a sua natureza substituindo-a pela
obra do espírito, da entrega a Deus e daí ser exemplo para muitos leitores
entre eles padres, bispos, cardeais e até um papa, é que radica a decepção. Os
leitores que me acompanham aqui, devem lembrar-se das minhas reticências quanto
à vida que Green conta nos seus dezoito volumes do Diário. Fui lendo-os à
medida que iam saindo, sempre numa espécie de êxtase travado de dúvidas. O
escritor brasileiro Lúcio Cardoso, também ele diarista, chama a atenção para o
facto de o escritor francês ser demasiado “bom rapaz” e aquela tranquilidade
ser fictícia. Jean Chalon, de uma forma velada, diz um pouco mais, assim como
Paul Morand, Matthieu Galey, Jules Roy... E ainda vou na página 100!