Terça, 1 de Novembro.
A um canto do salão, no lugar reservado à
memória do pai, Mai-Hong colocou dois pavios de incenso, quatro dióspiros, um
cacho de uvas e uma tijela com água, para que nada falte ao defunto Além-túmulo.
- Ontem dia radioso de sol cristalino embora um pouco frio. Partimos
cedo para uma visita a Baden-Baden, na Alemanha. Dostoiévski, inevitavelmente,
acompanhou-me. Atravessando o Reno que separa a França da Alemanha, estamos do
outro lado onde a cidade vive à sombra das termas de Caracala guardada pela Floresta
Negra. Trata-se de uma cidade tranquila no Inverno e celebrada no Verão. Descemos
as suas ruas pedonais até ao fundo onde um jardim defini os espaços e o teatro nacional
se ergue imponente. Pelas ruas estreitas, somos surpreendidos por igrejas,
lojas, cafés, uma arquitectura rococó a par de edifícios ao gosto Haussmann, restaurantes
tudo sólido à maneira alemã e uma atmosfera de tranquilidade onde apetece estar
num esquecimento recolhido. Não vou dizer que se respire luxo, antes uma
atmosfera de estância termal à moda antiga, a água numa ode encantatória a
acariciar a cidade onde a verdura outonal introduz um toque poético. Almoçámos
num restaurante típico, com toda a sorte de carnes, cerveja e ambiente animado.
Nas esplanadas aquecidas por irradiadores de pé, pequenas coberturas para os
mais friorentos em cada cadeira, fachadas decoradas a cores vivas, a multidão
de turistas a gozar a tarde solheira. Ao lado disto, aqui e acolá, pedintes esmolavam
ante a indiferença dos que alegremente passavam.
- Mais um acordo foi assinado nas costas dos euro-europeus. Desta vez
com o Canadá ou antes com as grandes empresas que são quem ditam as ordens aos
nossos corruptos e subornados governantes. Num gesto democrático dissimulado, o
Acordo dito de CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement´s) deverá ainda
ser aprovado pelos parlamentos dos países que integram o euro. Evidentemente Portugal assina de cruz como a maioria dos deputados europeus. Pergunta-se
para que serve mais esta hipocrisia, quando tudo foi tratado sem uma palavra
que permitisse a discussão. É um péssimo acordo e o tempo vai fazer jus às
minhas palavras quando os agricultores, por exemplo, perceberem que foram
traídos.
- Antes de deixar Strasbourg, fui numa flanada de despedida dizer adeus aos
velhos prédios bêbados do centro histórico, olhar a catedral e as ruas
adjacentes, respirar o ar civilizado, tomar café na Praça Kléber e deixar-me
embalar pela rotina de uma cidade antiga, projectada humanamente, tecida nos
fios do tempo lastro que os séculos não destruíram. Não sei quem quis levar-me outro
dia a conhecer o monstro de vidro que abriga os "defensores" dos europeus. Recusei.
Não quero nada com tipos que estão ao serviço das multinacionais e operam em
função delas. Estou esta tarde de retorno a Paris, depois de uns dias felizes
entre amigos e lugares. Sempre apreciei estes momentos frágeis e quis fazer
deles a festa que a vida celebra esquecendo-se que um dia tudo finda e nada
neste mundo possui o dom de eternizar quem está de passagem. O dia de hoje é
isso que nos recorda : “Lembra-te homem que és pó...” Por isso dignemos não só a
vida que Deus nos deu, como todos os seres humanos por Ele criados.
Kammerzell ex-libris de Strasbourg |