Domingo, 20
Lembro-me, em plena catástrofe a que nos
conduziu o PS de Sócrates, do país revoltado contra as medidas de austeridade
que se seguiram e fizeram 2 milhões de pobres. Passos Coelho fez tábua rasa da
descida à rua de dois milhões de manifestantes, entre os quais este que aqui
escreve, no Parlamento eram votadas leis que conduziram dez milhões de
portugueses à pobreza, o desemprego atingia quase 30 por cento da população
activa, e a 15 de Março de 2015 uma mulher corajosa entrou na Assembleia
Nacional (a casa de todos os portugueses), para gritar das bancadas a demissão
do primeiro-ministro e dizer-lhe na cara que “metia nojo ao povo”. Ana Nicolau
de seu nome, fazia parte dos trinta por cento de desempregados, era, portanto,
absolutamente justa a sua revolta e mais justa quando a manifestou na sua própria casa. Foi agora julgada em
tribunal que lhe aplicou uma multa de 1440 euros que ela, claro, não possui.
Lopes Barata, o infeliz juiz, disse que “a sociedade (não explicou qual) não
permite que a sua actuação se faça dentro da Assembleia da República” e
acrescentou moralista: “se tivesse sido eleita deputada, podia ter gritado à
vontade”. Sentença, no mínimo, bizarra. Até porque os cidadãos que deviam estar
em primeiro na mira da Justiça, nunca são escutados quando se insurgem contra
as mentiras propagadas pelos políticos que em campanha dizem uma coisa e no
exercício do poder outra. Depois o Parlamento não é a mansão da nobreza que nos
governa, nem os portugueses os empregados domésticos, subservientes e
agradecidos, de suas excelências. Os papéis, devia saber o senhor juiz, estão
invertidos. São os políticos que estão ao serviço do povo e não este de cabeça
baixa à mercê deles.
- A semana trouxe-nos ainda outra organização retardada do salazarismo:
as forças armadas. Já aqui me revoltei contra as mortes dos jovens soldados
este verão. Pela primeira vez em democracia, os militares que estiveram na sua
origem, foram chamados a justificar as causas dos acidentes ocorridos durante a
instrução na base dos Comandos. Chamemos-lhes acidentes. Em realidade foi
barbárie pura e dura. Tanto os
instrutores como o médico de serviço e os enfermeiros, segundo a magistrada
Cândida Vilar, os suspeitos trataram os militares “como pessoas descartáveis,
movidos por um ódio patológico e irracional contra os instruendos que
consideram inferiores por ainda não fazerem parte do Grupo de Comandos”. Estes criminosos,
apurou-se mais tarde, já os infelizes rapazes estavam em estado de
inconsciência, ainda os forçaram a engolir terra. Os machões operacionais,
invertidos psicologicamente, devem sofrer de um qualquer trauma que os atou
definitivamente a uma espécie de raça ariana à portuguesa de que os Comandos
são as almas terrenas de Adolfo Hitler.
- Ontem, de carro, rumei ao Lumiar. Fui ao encontro de Maria Estela
Guedes que para o efeito me havia convidado por e-mail. Não posso dizer Não a
esta querida protectora por quem tenho uma grande consideração e a quem agradeço
o ter prosseguido neste difícil – cada vez mais espinhoso – caminho da escrita.
Algures, nestas páginas, expliquei já o quanto lhe devo. Agora do que queria
falar é do encontro cultural sob o seu patrocínio que decorreu no Mosteiro de
Santa Maria versando os temas: Arte, Ciência, Espiritualidade. Devo confessar
que por instinto, sou adverso a este tipo de reuniões culturais. Há em mim o
eterno pudor da exibição, a defesa do ridículo, a travagem da exposição, física
ou intelectual, como se desterrasse para os romances toda a loucura que trago
travada aqui dentro. Mas depois, começada a sessão, senti-me invadir de ternura
por aquele punhado de gente gira, que ia falando disto e daquilo com sentimento
e propriedade, às vezes em tom esotérico, nunca indiferente à minha sede de
conhecimento. A dada altura, comecei a bocejar, movimentava-me na cadeira,
cruzava e descruzava as pernas. Por fim, não podendo mais, disse para a
participante que estava ao meu lado: “Este tipo gosta de se ouvir, é um sarna,
com a cabeça baralhada!” Ela riu-se e a partir daí instalou-se entre nós uma
espécie de liberdade que parecia ter começado muitos anos antes. Tudo
desaparece quando Luísa Amaro dedilha a guitarra portuguesa e explica de uma
maneira simples e coloquial, a garra que dorme dentro de si, por aquele
instrumento que fez o génio de Carlos Paredes. Depois, levanta-se Maria José
Camecelha para versar o tema das imagens que a cidade rouba ao passante desviando
o seu olhar daquilo que humaniza os lugares e subverte com a publicidade e a
imposição autárquicao direito ao usufruto do silêncio e à planura
do horizonte. Ainda comi lá fora em conversa com a professora Estela Guedes uma
fatia de bolo rainha. A seguir ausentei-me por compromissos pessoais. Mas o
essencial do que nos reuniu, estava cumprido.
- Não sei que espécie de calma, de sossego íntimo, inundou hoje o meu dia.
Parecia que não tocava nas coisas nem era tocado por nada de tangível, uma situação
de plenitude sobranceira à minha própria existência, concebida sem pecado
original – um puro estado de graça.
- O almoço: salmão selvagem grelhado com puré de aipo e crème légère a 15% de gordura, tábua de
bons queijos que trouxe comigo (hoje é domingo, não é verdade), tudo regado com
um Douro Cassa doc 2012, tarte de medronhos e tangerinas das minhas árvores.