Sábado, 6.
Eu percebo grosso modo a diferença do Orçamento a que se arvora o
actual ministro das Finanças para o presente ano. Como também não me escapa a
ressurreição do ex-primeiro-ministro e os caldos quentes da senhora Merkel, entendo
ainda a aceitação dos partidos de esquerda que apoiam o Governo. No fundo isto
é uma e a mesma confraria, cada qual fingindo que não foi enganado, todos
exibindo o ar satisfeito por iludirem o povo que, contente por não ver
reduzidos salários e reformas, pensa que as promessas do PS foram, enfim,
cumpridas. Acontece que a procissão ainda vai no adro. Às alegrias irão
juntar-se as tristezas e os amargos de terem sido uma vez mais enganados. Um
Estado que vive apenas com a obsessão de cobrar impostos, não tem futuro.
- Li há dias o último romance de Gabriel Matzneff, La Lettre au Capitaine Brunner. O autor igual a si próprio,
exibindo as suas obsessões, as suas paixões, as suas revoltas, o seu
inconformismo. O curioso porém, reside no facto de a realidade ser transformada
em ficção, ao contrário do que é habitual. O narrador é simultaneamente Nil
Kolytcheff admirador de Feydeau, Raoul Dolet o cineasta obsessivo, além de
sentirmos o autor disseminado pelas duzentas páginas, numa multiplicidade de
situações que empresta às personagens o seu modo de vida, de pensar, forjado,
inclusive, em expressões que estão presentes nos Diários de Matzneff e são
criações linguísticas que não vemos noutro escritor e julgo que nem fazem parte
da língua de Molière. Por exemplo, referindo a velha questão entre direita e
esquerda afirma “c´est kif-kif bourricot”. O lado profundo de um homem
torturado pela doença e a morte, é dado por Nathalie a mulher que descobriu o
amor de outra mulher: “La nature a bien
fait les choses, ne trouvez-vous pas? Nous arrivons à la mort soûls des
plaisirs de l´existence, rassasiés, repus, délivres de nos désirs, enfin
pacifiés.” Realidade e ficção misturam-se, são uma e a mesma coisa, lugares,
situações políticas, personagens verídicas, como se a criação literária não
pudesse impor-se quando não parte do lado intrínseco do romancista, sendo o
húmus que dá corpo à obra, consistência à narrativa, objectividade à história. Em
Gabriel Matzneff tudo o que é inventado não tem direito a existir, a atravessar
o tempo, a apresentar-se às gerações futuras. E tem razão. Quando nos lembramos
de escritores como Montaigne, Casanova, Hawthorne, Bowles ou qualquer um dos geradores
da Beat Generation, mesmo Stefan Zweig compreendemos que o escritor autêntico é
aquele que deixa a pele na concepção da sua obra.