sábado, fevereiro 06, 2016

Sábado, 6.
Eu percebo grosso modo a diferença do Orçamento a que se arvora o actual ministro das Finanças para o presente ano. Como também não me escapa a ressurreição do ex-primeiro-ministro e os caldos quentes da senhora Merkel, entendo ainda a aceitação dos partidos de esquerda que apoiam o Governo. No fundo isto é uma e a mesma confraria, cada qual fingindo que não foi enganado, todos exibindo o ar satisfeito por iludirem o povo que, contente por não ver reduzidos salários e reformas, pensa que as promessas do PS foram, enfim, cumpridas. Acontece que a procissão ainda vai no adro. Às alegrias irão juntar-se as tristezas e os amargos de terem sido uma vez mais enganados. Um Estado que vive apenas com a obsessão de cobrar impostos, não tem futuro.


         - Li há dias o último romance de Gabriel Matzneff, La Lettre au Capitaine Brunner. O autor igual a si próprio, exibindo as suas obsessões, as suas paixões, as suas revoltas, o seu inconformismo. O curioso porém, reside no facto de a realidade ser transformada em ficção, ao contrário do que é habitual. O narrador é simultaneamente Nil Kolytcheff admirador de Feydeau, Raoul Dolet o cineasta obsessivo, além de sentirmos o autor disseminado pelas duzentas páginas, numa multiplicidade de situações que empresta às personagens o seu modo de vida, de pensar, forjado, inclusive, em expressões que estão presentes nos Diários de Matzneff e são criações linguísticas que não vemos noutro escritor e julgo que nem fazem parte da língua de Molière. Por exemplo, referindo a velha questão entre direita e esquerda afirma “c´est kif-kif bourricot”. O lado profundo de um homem torturado pela doença e a morte, é dado por Nathalie a mulher que descobriu o amor de outra mulher:  “La nature a bien fait les choses, ne trouvez-vous pas? Nous arrivons à la mort soûls des plaisirs de l´existence, rassasiés, repus, délivres de nos désirs, enfin pacifiés.” Realidade e ficção misturam-se, são uma e a mesma coisa, lugares, situações políticas, personagens verídicas, como se a criação literária não pudesse impor-se quando não parte do lado intrínseco do romancista, sendo o húmus que dá corpo à obra, consistência à narrativa, objectividade à história. Em Gabriel Matzneff tudo o que é inventado não tem direito a existir, a atravessar o tempo, a apresentar-se às gerações futuras. E tem razão. Quando nos lembramos de escritores como Montaigne, Casanova, Hawthorne, Bowles ou qualquer um dos geradores da Beat Generation, mesmo Stefan Zweig compreendemos que o escritor autêntico é aquele que deixa a pele na concepção da sua obra.